Existe uma hipocrisia meio generalizada quando se trata dos preços dos automóveis no Brasil – por parte das montadoras, do governo e também dos críticos. Quero tratar desse tema, mas vou me ater aos automóveis de passeio, pois os veículos comerciais muitas vezes recebem incentivos extras via BNDES, Finame etc. Já os carros normais têm 78,7% de suas vendas feitas diretamente pelos consumidores (os outros 21,3% são vendas diretas para frotistas, taxistas, governos etc.). Como se sabe, as vendas de automóveis estão cada vez mais baixas: o primeiro bimestre de 2016 apresentou uma queda de 28,7% em relação ao primeiro bimestre de 2015, que já havia sido péssimo. Foram 253,9 mil emplacamentos este ano, contra 355,9 mil no ano passado. Em apenas dois meses, mais de 100 mil carros de passeio deixaram de ser vendidos!

Mas, apesar disso, os preços não param de subir. Vejamos o caso do Fiat Palio Attraction 1.0, bastante procurado pelos consumidores. Em fevereiro de 2015, custava R$ 36.760. Em fevereiro de 2016, saía por R$ 40.540 (um aumento de 10,3% contra uma inflação de 12,4%). Mas no dia 11 de março já estava custando R$ 41.780 (um aumento de 3,1% contra uma inflação de 1,3%). O ruim desse diagnóstico é que, aparentemente, a ciranda inflacionária parece estar voltando, com reajustes mensais.

De quem é a culpa? Das marcas multinacionais que, segundo os críticos, exploram o bolso dos brasileiros e não reduzem suas margens de lucro? Talvez. Mas nunca saberemos, pois essas margens são guardadas a sete chaves. Por meio de sua associação (Anfavea), os fabricantes de automóveis apontam os altos impostos sobre vendas de automóveis. No Brasil, eles representam 48,2% para carros até 1000 cm3 de cilindrada e 52,3% para automóveis até 2000 cm3. Acima dessa cilindrada, 54,8%. Na média, ficariam acima de 50%. No Japão, esses impostos são de 5% e na Itália chegam a 22%. Mas, para citar dois países mais próximos ao Brasil, com grande produção local, temos o México com 16% e a Argentina com 21%.

Usando o Fiat Palio Fire 1.0 como exemplo, a Anfavea observa que o valor desse carro em dezembro de 2015, que era de R$ 28.360, cairia para R$ 20.680 sem IPI, ICM e PIS/Cofins e baixaria para R$ 19.149 se não tivesse nenhum imposto. Mas carro com zero de imposto é uma irrealidade, não existe em nenhum lugar do mundo. Então, praticando os 21% da Argentina, o preço desse Palio cairia para R$ 25.022 (não parece um desconto tão grande assim). Com os 16% do México, ele custaria R$ 23.988 (ainda nos parece caro) e mesmo com os 5% do Japão seu preço seria de R$ 21.714 (estamos falando de um carro básico, duas portas, 1.0, sem ar-condicionado, sem direção e sem rádio). Isso, de alguma forma, derruba parcialmente o argumento do imposto alto.

Outra observação das montadoras é que o carro brasileiro “é barato em dólar”. Usando como base o câmbio médio de dezembro passado (US$ 1,00 = R$ 3,871), a Anfavea mostra que o Palio Fire custava apenas US$ 7.326 com todos os impostos. Então fiz uma pesquisa, peguei os preços dos carros de um e dois anos atrás, fiz as contas com o câmbio médio daqueles dezembros e cheguei à seguinte conclusão: o dólar não pode ser uma justificativa, pois esse mesmo Palio Fire 1.0 custava US$ 8.866 (R$ 24.268) em 2014 e US$ 10.636 (R$ 24.910) em 2013. Nesse caso, podemos dizer que naquela época o carro brasileiro “era caro em dólar”.

Mas minha maior surpresa ocorreu ao comparar os preços do Chevrolet Onix 1.4 no Brasil (impostos de 52%) e na Argentina (impostos de 21%). Similares em conteúdo e motorização (embora o brasileiro seja flex), o Onix LT custava em fevereiro US$ 11.608 no Brasil e US$ 15.452 na Argentina. Da mesma forma, o Onix LTZ custava US$ 13.141/16.406 e o Onix Effect saía por US$ 13.091/17.041. Portanto, o carro mais vendido do Brasil é mais caro em dólar na Argentina, que pratica um imposto menor. Isso mostra que nem o dólar nem os impostos são os únicos responsáveis pelos preços dos carros.

Apesar de tudo, é legítimo que os fabricantes de automóveis tenham altos lucros. Na verdade, é saudável. Afinal, poucos setores investem tanto em aperfeiçoamento, segurança, design, conectividade, pós-venda e patrocínios culturais quanto a indústria automobilística. Queremos carros mais seguros, mais potentes, menos poluentes, mais espaçosos, que sejam a extensão das nossas casas e nossos escritórios – e isso custa caro. Sem contar que a maioria das montadoras investe em programas sociais e ambientais. Como vivemos numa economia capitalista, o lucro não apenas é legítimo como necessário. O que não está certo é dizer que o carro “é barato em dólar”, pois o consumidor brasileiro não tem nada com isso. Nossos salários são pagos em reais. E todas as empresas estabelecidas no País devem ser administradas em reais, ainda que suas matrizes façam as conversões dos lucros para dólares, euros, ienes etc.

Quanto ao governo, recebe a maior quota parte da hipocrisia na política de preço dos carros. Ao contrário do que acontece em muitos países, no Brasil todos os impostos são canalizados para o consumo e não para a renda. Isso sacrifica tremendamente as pessoas que ganham menos. Um cidadão que ganha R$ 5 mil/mês e comprou um carro 1.0 financiado, para sua família descer com filhos, sogra, cachorro e papagaio para o litoral, paga o mesmo imposto que um executivo que ganha R$ 50 mil/mês e comprou o mesmo carro 1.0 para sua filha que passou no vestibular. Na prática, o imposto do homem que ganha R$ 5 mil será dez vezes maior do que o imposto do homem que fatura R$ 50 mil. E isso vale para tudo, do pãozinho que se compra na padaria até o automóvel último tipo.

Enquanto os políticos não mudarem essa situação, o carro continuará sendo caro no Brasil, pois o problema maior não está no preço dos automóveis e sim no poder de compra do cidadão médio, que é baixo. Se os governos e os parlamentos estivessem de fato interessados na melhoria da mobilidade, investiriam em soluções eficientes de transporte público. Dessa forma, o carro passaria a ser uma regalia e não uma necessidade. Hoje, o brasileiro compra carro por necessidade, pois é dificílimo se locomover entre as cidades e nas metrópoles por meio de transporte coletivo. E assim ficamos sempre reféns de análises hipócritas quanto ao preço dos automóveis e aos lucros dos fabricantes. A modificação na cobrança de impostos (não apenas no consumo de automóveis, mas de tudo) baixaria o preço dos bens, melhoraria a distribuição de renda, daria um gás no consumo e livraria o governo dos marabalismos setoriais. Quem sabe assim a indústria automobilística teria uma base sustentável de consumidores e deixaria de ser refém da frequente, desgastada e inútil sanfona na alíquota de IPI.