05/10/2015 - 7:00
Desde que foi pega traindo a confiança do consumidor num teste de emissões de NOx (óxido de nitrogênio) nos Estados Unidos, a Volkswagen está sendo tratada como uma espécie de Geni da indústria automobilística. Ao manipular os índices de emissões de NOx de 482.000 carros com motores 4 cilindros “clean diesel” (em versões dos VW Passat, Jetta, Golf, Beetle e Audi A3), a montadora alemã deu margem a estimativas de que 11 milhões de automóveis do grupo estejam jogando entre 237.161 e 948.691 toneladas de NOx por ano no planeta.
Como o NOx é mais danoso (a curto prazo) ao ser humano do que o CO2 (dióxido de carbono), que é responsável pelo aquecimento global, a derrapada ética da Volkswagen provocou a ira da imprensa alemã. A revista semanal Der Spiegel fez uma capa demolidora. Transformou um Fusca em esquife, carregado por seis homens de luto, e foi lacônica no título: “Der Selbstmord” (O Suicídio). Mas, apesar da indignação alemã pela maneira irresponsável como alguns dirigentes trataram um ícone do país, a Volkswagen vai continuar vendendo carros em todo o planeta. É difícil prever o tamanho do estrago que os testes de emissões pode provocar nas vendas da Volks, embora seu valor de mercado já tenha recuado quase 40% em duas semanas. Suas ações na Bolsa de Frankfurt, que eram vendidas a 167,60 euros no dia 17/09, estavam cotadas 102,00 euros no dia 1º/10. De qualquer forma, a companhia ainda valia 46,672 bilhões de euros no final da semana passada – e muitos ainda apostam que ela não foi a única a mentir para os especialistas.
O escândalo do “dieselgate” dá margem para inúmeras interpretações. Por isso, apesar da má conduta ética da montadora, quero lançar um olhar mais abrangente sobre o caso. Na minha opinião, a Volkswagen mergulhou fundo demais no ideal capitalista de produzir e vender cada vez mais. Afinal, em 2014 o Volkswagen Group (9.496.891 veículos vendidos) já era maior que o Toyota Group (8.657.903) e a General Motors Company (7.362.897). Com um crescimento de 5,1% em relação a 2013 (quando também terminou na liderança), o Volkswagen Group detinha 12,98% do mercado global de automóveis no final do ano passado, contra 11,83% do Toyota Group e 10,02% da GM Company. Mas Wolfsburg queria mais. Pelo menos até antes do escândalo dos motores a diesel, o objetivo da empresa era transformar a marca Volkswagen na líder mundial de vendas de automóveis até 2018. Contando só os modelos que trazem os logotipos VW, a marca terminou a temporada de 2014 em segundo lugar, com 6.022.625 emplacamentos, contra 6.384.760 da líder Toyota. A Ford aparecia em terceiro, com 5.413.255, e a Chevrolet em quarto, com 4.108.397.
Evidentemente, a Volkswagen não tinha como objetivo intoxicar pessoas, mas sim vender mais carros. E na ânsia de vender mais e mais e mais, sempre e sempre e sempre, inúmeras empresas do mundo inteiro (também de todos os segmentos) estão envenenando o planeta. A emissão de CO2 – principal vilão do aquecimento global – tem subido a um ritmo sem precedentes desde 1984. Mas, segundo um relatório do órgão americano EIA (Energy Information Administration), o uso de motores a gasolina e a diesel para transporte nos Estados Unidos resultou, em 2014, na emissão de 1,075 bilhão de toneladas e 444 milhões de toneladas de CO2, respectivamente, totalizando 1,519 bilhão de toneladas de CO2. Isso equivale a 83% do total de emissões de CO2 por todo o setor de transporte dos EUA. Entretanto, essa poluição absurda representou apenas 28% de todo o dióxido de carbono que o setor industrial de Tio Sam jogou na atmosfera no ano passado.
E por que isso acontece? Porque no ritmo industrial dos últimos 40 ou 50 anos, os países se convencionaram a seguir um padrão de aceitação de venenos, pesticidas, gases, acidentes e até assassinatos que levou nosso modo de vida (e morte) a se transformar naquilo que o filósofo alemão Ulrich Beck batizou de Sociedade de Risco. Na visão de Beck, a definição de limites de tolerância ou a estipulação de valores máximos levou à criação de uma indústria do risco:
Limites de tolerância para vestígios poluentes e tóxicos “admissíveis” no ar, na água e nos alimentos têm, em relação à distribuição de riscos, um significado comparável ao que tem o princípio de desempenho para a distribuição desigual de riqueza: eles simultaneamente admitem as emissões tóxicas e legitimam-na dentro dos limites que estipula. Quem quer que limite a poluição, estará fatalmente consentindo com ela. Aquilo que ainda é admissível e, por sua definição em termos sociais, “inofensivo” – independente do quão daninho seja.
Particularmente, enquanto todo mundo atira contra a Volks, vejo uma oportunidade para que a indústria automobilística seja repensada. Afinal, por mais que a tecnologia se modifique (e agora ficou comprovado isso), os motores a diesel nunca conseguirão ser menos poluentes do que os alimentados por gasolina. O diesel é largamente utilizado nos carros de passeio dos Estados Unidos e da Europa porque é mais barato. E todo mundo quer gastar menos (não necessariamente poluir menos). Mas, com a emissão de 1,075 bilhão de toneladas métricas de CO2 a cada ano só nos Estados Unidos, está claro que os motores a gasolina também não resolvem a questão ambiental. Por isso, a verdadeira guinada nessa questão não será apenas uma exemplar punição à Volkswagen, mas sim a adoção de políticas de incentivo real à produção e comercialização de veículos elétricos. Só assim estaríamos falando de carros que não poluem.
Modelos que circulam sem poluir a atmosfera já são comuns em muitas marcas, mas os números são ridiculamente pequenos quando comparados aos poluidores. Tanto nos Estados Unidos (30.200 emplacamentos em 2014) quanto na Europa (15.158), o carro elétrico mais vendido é o Nissan Leaf. Nos EUA, ele é seguido pelo Chevrolet Volt (18.805 emplacamentos) e pelo Tesla Model S (18.480). No mercado europeu, logo atrás do Leaf vêm o Renault Zoe (11.090 vendas) e o Tesla Model S (8.841). Com relação à Volkswagen, o e-Golf vendeu apenas 357 unidades em território americano no ano passado. Na Europa, seu desempenho com carros elétricos é melhor, ocupando o quarto lugar com o e-Up (5.450 vendas) e o sexto com o e-Golf (3.328).
Portanto, o risco à saúde humana só desapareceria (teoricamente) se a tolerância à poluição fosse reduzida a zero. Como eu já disse, Beck identificou uma indústria do risco, pois é preciso engenharia e investimentos para que os níveis de NOx ou CO2 que saem dos escapamentos dos carros passem de, digamos, 100 g/km para 80 g/km. Para movimentar a economia, portanto, o risco é ótimo. Em seu livro Futuros Imaginários: das Máquinas Pensantes à Aldeia Global, Richard Barbrook afirma que “o presente é compreendido como o futuro embrionário e o futuro ilumina o potencial do presente”. Partindo dessa premissa, um professor da Universidade Mackenzie, Vinícius Prates, escreveu em 2013 uma tese que talvez exemplifique a forma como olhamos para os automóveis que desejamos (ou como as montadoras querem que a gente os veja):
Apesar dos muitos milhões de carros poluentes fabricados por ano, a indústria automobilística se caracteriza do ponto de vista do enunciador por este futuro que ilumina e explica o presente: ou seja, ela é figurada como sustentável pelo que um dia ocorrerá. Assim, não importa quantas unidades movidas a gasolina sejam fabricadas (e as consequentes críticas dos ambientalistas antagonistas), o enunciador consegue tamponar a falta constitutiva da crise ambiental por uma operação de deslizamentos de sentidos – os milhões de carros “sujos” (que vemos com nossos olhos) saindo das fábricas apenas preparariam o glorioso porvir de um capitalismo sem sintomas (que vemos com nossa ideologia), repleto de máquinas ecologicamente limpas.
Se liderar uma cruzada mundial de incentivo aos veículos elétricos, a Volkswagen tem uma chance de propor um mundo melhor, renascer depois do “suicídio” e voltar a dizer um dia, em qualquer língua: “Você conhece, você confia”.
QUANTO VENDEM OS CARROS QUE NÃO POLUEM | |||
MODELO | EUROPA | EUA | TOTAL |
Nissan Leaf | 15.158 | 30.200 | 45.358 |
Chevrolet Volt | 18.805 | 18.805 | |
Renault Zoe | 11.090 | 11.090 | |
Tesla Model S | 8.841 | 8.841 | |
BMW i3 | 6.092 | 6.092 | |
Volkswagen e-Up | 5.450 | 5.450 | |
Smart Fortwo ED | 2.726 | 2.594 | 5.320 |
Renault Kangoo ZE | 4.197 | 4.197 | |
Volkswagen e-Golf | 3.328 | 357 | 3.685 |
Nissan e-NV200 | 2.300 | 2.300 | |
Renault Twizy | 2.293 | 2.293 | |
Ford Focus Electric | 203 | 1.964 | 2.167 |
Toyota RAV4 EV | 1.184 | 1.184 | |
Bolloré Blue Car | 1.170 | 1.170 | |
Chevrolet Spark EV | 1.145 | 1.145 | |
Mercedes Classe B ED | 150 | 774 | 924 |
Mitsubishi I-Miev | 675 | 196 | 871 |
Citroën C-Zero | 613 | 613 | |
Peugeot iOn | 570 | 570 | |
Kia Soul EV | 468 | 468 | |
Goupil G3 | 451 | 451 | |
Honda Fit EV | 407 | 407 | |
Peugeot Partner EV | 309 | 309 | |
Citroën Berlingo EV | 187 | 187 | |
Renault Fluence ZE | 98 | 98 | |
BYD e6 | 54 | 54 | |
TOTAL 2014 | 59.683 | 63.718 | 124.049 |