19/03/2024 - 16:50
Depois de caírem até o final da década passada, as mortes no trânsito brasileiro voltaram a crescer. Economia em alta e menor fiscalização contribuem para mudança de tendência, que é mais forte no Norte e Centro-Oeste.
A mortalidade no trânsito brasileiro vem crescendo constantemente nos últimos cinco anos, desde 2019. O total de mortes passou de aproximadamente 32 mil em 2019 para cerca de 34 mil em 2022, último ano com dados disponíveis no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), mantido pelo Ministério da Saúde.
É a inversão de uma tendência: entre 2014 e 2019, a quantidade de mortes caía ano após ano. Agora, são três anos seguidos de subida.
A reversão coloca o Brasil ainda mais longe de alcançar um objetivo estipulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS): a de reduzir pela metade os números de mortes no trânsito no mundo até 2030. O país não é um caso isolado: mais de 60 nações registraram um aumento da mortalidade no trânsito na última década.
Segundo uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não foram só avanços em fiscalização e infraestrutura que reduziram as mortes na década passada. A crise econômica, que diminuiu o número de veículos nas ruas e estradas, também teve influência.
Agora, com a economia crescendo aproximadamente 3% ao ano, há o temor de que aconteça o contrário. “Com o reaquecimento econômico, essas taxas vão subir”, prevê Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, um dos autores da publicação.
O pesquisador, no entanto, acredita que a mortalidade não deve retornar aos piores níveis caso seja observada uma condição: o investimento em políticas de segurança no trânsito.
Carvalho afirma que algumas das medidas que evitaram um aumento ainda mais vertiginoso das mortes no trânsito no Brasil entre 2000 e 2014 foram a redução dos limites de velocidade, a concessão de rodovias com melhoria de infraestrutura e mais rigidez para punir e multar infratores. “Se houver um afrouxamento das políticas punitivas, os impactos começam a aparecer”, diz.
Um afrouxamento nas punições foi justamente o que aconteceu nos últimos anos.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, que governou o país entre 2019 e 2022, era um frequente crítico do que chamava de “indústria da multa”. No período, a Polícia Rodoviária Federal removeu radares de velocidade de rodovias e o número de multas em estradas federais caiu. Com frequência e sem citar provas, Bolsonaro afirmou que autoridades de trânsito estavam usando multas de velocidade para incrementar a arrecadação de fundos públicos e não para aumentar a segurança.
Também foram aprovadas leis que aumentaram o limite de pontos na CNH, ou seja, a quantidade de infrações que os motoristas podem cometer antes de ter a carteira de habilitação suspensa.
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Como o Brasil se compara ao resto do mundo?
Com a tendência atual, o Brasil está ainda mais longe de atingir a meta estipulada no Pnatrans, o plano nacional para redução de mortes no trânsito criado em 2018: diminuir a taxa de mortalidade pela metade até o final da década, de acordo com recomendações da OMS.
Em 2022, aproximadamente 16 de cada cem mil brasileiros morreram em um acidente rodoviário. O objetivo é reduzir esse número para perto de oito a cada cem mil habitantes até 2030, ao nível das proporções de países como Portugal, Coreia do Sul e Cuba.
Porém, a tendência atual aponta para a direção contrária. Hoje, a frequência de mortes nas vias brasileiras é maior do que em países vizinhos como Argentina, Uruguai, Colômbia e Peru. A taxa de mortalidade também fica acima da mediana dos outros países da América Latina e Caribe. Ela também é mais alta do que a média de países de renda média-alta, o mesmo nível de renda do Brasil.
Enquanto a Europa tem o trânsito mais seguro do planeta – a Alemanha, por exemplo, tem um registro de quatro mortes para cada cem mil habitantes –, a pior situação acontece na África Subsaariana, onde os países mais inseguros têm mortalidade quase três vezes maior que a brasileira.
Um país diverso como o Brasil, porém, não é bem resumido com apenas um número. São Paulo, o estado mais rico, tem um nível de mortalidade parecido com o de países do Leste Europeu como Bulgária e Polônia. Já Tocantins e Mato Grosso têm taxas semelhantes à de Serra Leoa, país subsaariano.
Onde as mortes têm crescido mais?
Desde que o total de mortes voltou a crescer, o aumento se concentra nas regiões Norte e Centro-Oeste. O crescimento é mais intenso em estados como Mato Grosso, Roraima, Rondônia e Amapá.
No início da década passada, quando a mortalidade atingiu patamares recordes antes de começar a cair, um aumento significativo também acontecia no Nordeste. De 2019 para cá, porém, os estados nordestinos apresentam estabilidade na taxa de mortes – ainda que em um nível alto.
Na comparação com outras partes do país, a frota de veículos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste só cresceu mais recentemente. “Historicamente, essas regiões tinham uma taxa de motorização menor devido ao nível de desenvolvimento mais baixo”, diz Jorge Tiago Bastos, professor do Departamento de Transportes da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “E quando o desenvolvimento não se dá de maneira organizada, pode levar a um aumento do número de mortes”.
O desenvolvimento desordenado, combinado a outros fatores, cria um cenário preocupante. “Os locais onde morrem mais pessoas também são locais onde o sistema de saúde tende a ser pior, a formação do condutor é pior, as condições das rodovias são piores”, diz o professor.
Outro fator importante é a composição da frota: em alguns estados, há uma proporção maior de motocicletas. Como elas são mais baratas que outros tipos de veículo, geralmente há uma quantidade maior em regiões mais pobres.
As motos são o modo de transporte que mais causam mortes no país, proporcionalmente. Em caso de colisão, não há nada protegendo o corpo do condutor. Assim, os acidentes costumam ser mais graves.
Como reduzir mortes?
De acordo com ambos os pesquisadores, aumentar a segurança no trânsito exige aumentar também a fiscalização e as campanhas de conscientização. Entretanto, eles destacam outras possibilidades menos óbvias.
Para Carvalho, do Ipea, é importante coletar dados sobre onde, quando e como os acidentes acontecem. Essas informações ajudam identificar trechos perigosos, estadas com manutenção precária e outros problemas críticos. “É fundamental que haja uma política nacional, das rodovias federais aos municípios, para que o poder público possa atuar preventivamente”, diz.
Bastos, da UFPR, chama a atenção para o planejamento da estrutura de transportes no Brasil. De acordo com o professor, vários países que hoje são referência em segurança no trânsito, como Suécia e Holanda, também tinham taxas altas de mortalidade nos anos 1970. Quando adotaram uma infraestrutura que priorizava a segurança, a situação mudou.
“É uma mudança de concepção para priorizar a segurança em vez da fluidez. No projeto de uma rodovia, você vai, em alguns pontos, reduzir velocidade por conta de segurança”, diz. “A gente ainda está numa fase de priorizar construir mais rodovias, e não rodovias mais seguras”.