Por  Flávio Silveira

O elétrico Audi e-tron (sem o Q8 no nome) chegou ao Brasil em 2021 como pioneiros entre os elétricos premium, e foi imediatamente eleito Compra do Ano. Em 2022, seu título foi roubado, na categoria “Elétrico de Luxo”, pelo BMW iX. Afinal, o rival inovou ainda mais, no design interno e no externo, no conteúdo e em muito mais, e veio em três versões, para diferentes gostos. Por isso, ele é a nossa escolha atual, Compra do Ano 2024 na categoria. Mas, depois que o elegemos, a concorrência se mexeu para atacar o líder de vendas dos alemães: ambos se renovaram no segundo semestre para tentar ter um 2024 melhor. A versão equivalente do BMW, a xDrive40i, tem 326 cv de potência, mas não estava disponível. Vejamos, então, qual das novidades é a melhor alternativa ao iX, e se algum desses crossovers – prefiro chamá-los assim porque ficam entre peruas de rodas maiores e utilitários esportivos tradicionais – tem qualidades para incomodar o “rei”.

Antes de continuar, vale notar que, diferentemente do que acontece nas categorias de entrada, no segmento de alto luxo os elétricos custam mais ou mesmo o mesmo que os equivalentes a gasolina da marca (BMW X5 híbrido, Audi Q8 a gasolina e Mercedes -Benz GLE a diesel). Neste comparativo, ambos custam o mesmo que o BMW iX de entrada: R$ 700 mil.

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Divulgação

Uma vantagem que os desafiantes oferecem logo de cara – com o perdão do trocadilho – é o design. Mas ela é apenas teórica, considerando que gosto é pessoal e, apesar do visual um tanto exagerado e polêmico, o BMW está vendendo bem. De qualquer modo, muita gente torce o nariz pra ele, enquanto os rivais que concorrem aqui, nesse ponto, são mais conservadores. O Mercedes -Benz ainda tem a grade fechada e com efeitos de luz, linhas mais arredondadas e outros detalhes que mostram que tem algo diferente. Mas o Audi, não fossem as rodas prateadas e os retrovisores externos trocados por câmeras (opcionais), não chamaria a atenção nas ruas (para isso, a marca tem o mesmo carro na configuração Sportback, com a carroceria no atualmente cobiçado estilo SUV-cupê, por R$ 30 mil adicionais).

Multi-experiência

A experiência de dirigir um elétrico pode ser mais (ou menos) “eletrizante”, conforme o modelo. Aqui, isso começa pelo visual externo: neste ponto, como acabamos de ver, o EQE leva discreta vantagem, mas nenhum chega perto da ousadia do líder de vendas. Isso pra quem deseja mostrar que tem um carro “diferente”, claro. É uma questão de gosto, obviamente, e também uma opção de cada cliente – e de cada marca, ou mesmo de suas diferentes linhas de modelos. Há, inclusive, carros idênticos visualmente nas versões a combustão e elétrica, como vimos neste especial (Avenger e iX1).

Já dentro da cabine, claro que não dá para esperar nada menos de modelos deste valor, então as listas de equipamentos são absurdamente completas – mas com vantagem para o Mercedes, como mostramos na tabela. E o Audi ainda cobra mais pelos faróis de LED de última geração (de série no rival), pelo carregador de bordo com 22 kW (também de série no EQE, corta o tempo de recarga AC pela metade) e pelas “câmeras retrovisoras” – que exigem uma adaptação até o motorista confiar nas imagens, e elas ainda ficam nas portas, mal posicionadas em relação aos olhos).

Mesmo com essa vantagem no conteúdo, é na forma que o EQE mais se destaca, ao oferecer uma experiência totalmente não ortodoxa, por assim dizer. Diferentemente dos apenas razoáveis EQA e EQB, ele é construído sobre uma plataforma própria para carros a bateria, chamada EVA2. E projetar um elétrico “do zero” tem a vantagem de permitir, por exemplo, aumentar a distância entre-eixos (já que não há mecânica tradicional, com o tanque atrás, um motor grande a combustão dianteiro, etc…). Aqui, apesar do comprimento contido, ela é de 3,03 metros, o que garante um enorme espaço na cabine e um ótimo porta-malas, de 520 litros.

Uma visão geral da cabine luxuosa e com linhas diferentes e a tela que mostra o assistente de direção em ação. Acima, o espaço traseiro excelente (são mais de três metros de entre-eixos), o mapa nativo de São Paulo e detalhes do cluster e da alavanca de câmbio (fica na coluna de direção). Abaixo, o raio-x mostra a localização do motor, com o conjunto de baterias abaixo dos bancos (Crédito:Divulgação )

Além de extremamente luxuosa, o design tem linhas e iluminação bem diferentes das vistas nos Mercedes a combustão, com uma tela do quadro de instrumentos “flutuante”, outra central, grande e quase quadrada, e acabamentos que utilizam uma mistura de madeira com um material high-tech, como um padrão 3D por cima. A alavanca de câmbio fica no volante, e alguns botões nele e no console são, ao mesmo tempo, “físicos” e sensíveis ao toque: pode-se escolher entre deslizar o dedo ou apertá-lo. E você também pode falar “Ei, Mercedes” e pedir algumas coisas, que ele entende e obedece. O volante tem aro grosso e três raios, sendo os horizontais duplos e inúmeros comandos – à esquerda os do cluster, à direita, os da tela central, tudo muito bem organizado.

Depois de algo tão especial, o Q8 e-tron parece comum demais (ou espalhafatoso versus discreto, dependendo do gosto). Evolução do antigo e-tron, primeiro elétrico da marca, ele ganhou mudanças visuais externas, mas não no habitáculo, onde começa a sentir a idade (afinal, foi apresentado em 2018 ao mundo). Então, apesar de ter um acabamento perfeito, não tem tanto “luxo visível”. Faz os ocupantes se sentirem bem, mas não especiais. Os acabamentos são bons, misturando couro, metal e “black piano”, o cluster digital é funcional, os comandos internos são fáceis e ainda há uma tela extra, abaixo da central, para ar-condicionado e modos de direção, como nos Range Rover. Mas tudo já está com um ar um tanto cansado, após anos sem renovação.

E a desvantagem continua no espaço: apesar de ganhar o nome Q8, ele é menor e menos luxuoso que o Q8 “normal”, a combustão, do qual deriva. Sim, a plataforma evoluiu e se chama PPE, mas, basicamente, é a MLB EVO – uma base ótima, usada no Lamborghini Urus, e a adaptação/evolução perfeita. Mas, por derivar do tradicional, tem entre-eixos 10 cm menor que o rival, com menos espaço traseiro (por outro lado, o porta-malas é ainda maior: 596 litros).

O projeto é de 2018, então mesmo com renovação externa e em detalhes, o Audi já sente o peso da idade. No alto, a tela central, bem menor, e a tela extra para controle do ar-condicionado. Ao lado, os bancos esportivos e o quadro de instrumentos digital, claro e fácil de usar e configurar. No raio-x, a principal vantagem: o motor adicional no eixo dianteiro (a potência extra é cobrada no consumo) (Crédito:Divulgação )

Ao volante

Ausência de ruído na cabine (ao menos de motor) e respostas instantâneas são características de todo elétrico, e os maiores atrativos na experiência ao volante. Nesse ponto, o Mercedes não oferece muito mais que isso. Tem posição de guiar alta como o consumidor quer e todo tipo de auxílio, com coisas como o head-up display que projeta o mapa colorido no para-brisa com indicações de navegação (como se não bastasse a realidade aumentada na tela central). Com motor traseiro de 245 cv e 550 Nm e tração também atrás, a dirigibilidade é irrepreensível, mas não empolgante. Não tem a “pegada” dos rivais e, dinamicamente, tende a sair de frente, mas logo é corrigido pela eletrônica (melhora no modo Sport). Claro que está longe de ser “manco”: tem outra proposta e desempenho de “300” a combustão. Mas o negócio dele é o conforto insuperável, com a suspensão a ar, a roda traseira que esterça para facilitar as manobras e o volante sempre com peso e precisão corretos.

De diferente, a experiência aqui tem duas opções de som para se ouvir na cabine em acelerações e reduzidas – um grave e nostálgico “tipo V8”, o outro parece uma espaçonave (dá para desligar). O mais diferente, e útil, são os modos de recuperação de energia. Rapidamente ajustáveis por aletas no volante, vão do “total inércia”, para vias livres, retas e planas, ao “dirigir com um pedal”, para o trânsito. O melhor é a recuperação inteligente: enxerga os carros adiante, e vai ajustando a frenagem ao fluxo sempre que você para de acelerar; quando você freia, se decidir fazê-lo, o pedal já desceu, como se estivesse de fato freando.

O Audi Q8 e-tron também tem recuperação inteligente, e ainda é muito superior na dinâmica e, sobretudo, no desempenho. Afinal, além de um motor traseiro de 225 cv, ele tem outro, no eixo dianteiro. No total, produzem 408 cv e 664 Nm, suficiente para ser dois segundos mais rápido no 0-100 km/h e humilhar o rival nas retomadas, e ainda garantem uma dinâmica superior, graças à tração integral elétrica, que dosa perfeitamente o torque em cada roda. No mais, leva vantagem ironicamente por, apesar de 200 quilos mais pesado, conseguir ser, ao volante, “igual” ao Q8 a combustão: um carro impecável, sem qualquer dos problemas dos elétricos.

Ao volante, o modelo da Mercedes-Benz prioriza o conforto, com suspensões a ar bastante macias e um desempenho adequado, mas não empolgante, afinal são 245 cavalos em um modelo de mais de 2.500 quilos (culpa das baterias de quase 100 kWh brutos). Dentro da proposta mais familiar-executiva do modelo, não há do que reclamar: entrega desempenho similar ao das versões 300/350 que sempre vendeu com motor a combustão

Mas o motor extra cobra no consumo: enquanto o Mercedes fez média de surpreendentes 4,9 km/kWh na estrada e 5,6 na cidade, o Audi fez 3,3 km/kWh e 3,8, respectivamente. E nos elétricos, obviamente, autonomia é assunto sério. Mesmo com a bateria maior, o Audi roda menos: tem alcance de 332 quilômetros, contra 367 do Mercedes (na prática, fizemos 390 e 335, respectivamente).

Antes da conclusão, para quem não gosta de dirigir – ou para situações em que isso se torna um teste de paciência –, ambos trazem ADAS nível 2, com direção semiautônoma e tudo mais. Mas o do Mercedes-Benz funciona em qualquer velocidade e é o melhor do mercado brasileiro. O do Q8 e-tron, apesar de não funcionar tão bem em tantas situações e não manter o SUV tão bem na faixa, é mais suave nas acelerações e frenagens e mantém uma distância melhor (mais curta) na cidade. E, ainda, se você gostou do EQE SUV, mas achou fraco, a versão AMG EQE 53 4Matic+ acaba de chegar com dois motores. São 625 cv por R$ 894.900. Pelo mesmo valor, o Audi SQ8 (só Sportback) tem 503 cv e o BMW iX50, 523 cv (ainda há o “verdadeiro M” iX60, de mais de R$ 1 milhão).

É nas curvas que o Q8 e-tron mostra uma grande vantagem sobre o conterrâneo: o modelo da Audi conseguiu reproduzir fielmente a dirigibilidade e o comportamento irretocável dos melhores modelos a combustão da marca, mesmo com a bateria de mais de 100 kWh, que o faz pesar mais de 2.700 quilos. Mas claro que, no limite, esse peso complica a situação – e começa a ser apontado como um problema em certos testes de colisão

Prazeres distintos

De modo geral, o EQE SUV faz questão de se mostrar especial (e tratar os ocupantes de modo especial), é mais luxuoso e chamativo. Já o Q8 e-tron faz tudo para parecer o mesmo Audi de sempre, e é mais bem acertado, além de ter desempenho muito superior – mas está com a cabine envelhecida e gasta muito (isso com pé leve, imagine usando os 408 cv). No fim, fique com o Mercedes-Benz se busca conforto e uma experiência diferente e com o Audi se quer desempenho e prazer ao volante. O ideal seria uma síntese dos dois… seria o BMW iX?