Os fatos que relato a seguir aconteceram na segunda metade dos anos 80. A Ford lançava uma nova versão do Escort XR3 e eu era repórter da revista Quatro Rodas, então a mais importante publicação automotiva do mercado nacional. Uma das minhas funções na publicação era o de levar os carros para a pista de testes na cidade de Limeira, no interior de São Paulo.  

Como na época a revista gozava de grande prestígio no meio, recebia em primeira mão todas as novidades que nossa indústria automobilística lançava. Por isso, recebi um Escort 1987 que acabava de ser lançado, novinho, com menos de 1500 km rodados, para que fosse testado. Sua reportagem seria publicada na próxima edição da revista.  

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Ford Escort XR3 linha 1987 – Foto: Ford/divulgação

Até então tudo corria nos conformes normais do meu trabalho na revista. O carro foi levado para a pista de testes e os resultados foram aferidos por mim na aceleração, velocidade máxima, retomada de velocidade, nível de ruído, consumo em velocidade constante e aderência lateral em curvas. 

Depois de extraídos esses resultados, a fase final era a das fotografias. Esse trabalho seria feito pelo saudoso e competente amigo Mituo Shiguihara. O japonês, sempre criativo no seu trabalho, me disse que ele queria uma foto de ação, uma vez que o XR3 era um carro destinado a velocidade, esportividade e por aí vai. Complementou ainda que a sugestão da foto tinha partido do Diretor de Redação e do Redator-Chefe, e que não poderiam ser contestadas por mim, um simples repórter.  

Ford Escort XR3 – Foto: Mituo Shiguihara/Quatro Rodas

O japonês havia pensado em uma foto do XR3 voando, literalmente! Expliquei a ele que realmente poderíamos fazer o XR3 voar, mas que o carro sentiria profundamente no momento da aterrisagem. Afinal de contas, apesar de veloz, ele não havia sido feito para decolar. Mas Mituo insistia que eram ordens dos chefes e que assim deveriam serem feitas. Atrás da pista de teste que utilizávamos, havia um canavial, e nas estradas de terra de lá havia boas rampas que poderiam ser utilizadas para a decolagem da aeronave. Quer dizer, do Escort XR3.  

E lá fomos nós fazer o XR3 ser transformado momentaneamente em um avião. Nos preparamos, eu e o fotografo, na melhor posição para as melhores fotos. Dirigi o XR3 até o início da rampa e acelerei para que, no topo da subida, o carro realizasse um belo salto, e o fotografo registrasse tal momento. Fiz aquilo que estava combinado: o carro pulou e o fotografo registrou. Quando parei o Escort, Mituo me disse: “foi legal, mas ele saltou só uns 30 cm. Achei pouco para a grandeza do carro, queria mesmo que fosse pelo menos 1 metro do chão!”. 

Ford Escort XR3 – Foto: Mituo Shiguihara/Quatro Rodas

Expliquei ao japonês que até poderia fazer o esportivo saltar mais do que os 30 cm da primeira foto, mas a aterrisagem seria catastrófica! A mecânica do XR3 não resistiria ao impacto com o chão. Mas, ele insistia que os chefes mandaram e nós teríamos que fazer. Avisei: “o carro vai voar como você quer, mas depois disso ficará imprestável!”.  

Fiz o mesmo ritual: desci a rampa e lá embaixo deixei um espaço maior para o Escort embalar, acelerei forte e subi a rampa na estrada de terra a cerca de 100 km/h. Ao chegar ao topo, o carro deu um salto tão alto que precisei tirar o pé do acelerador para o motor não passar de giro. Foi um silencio que durou alguns segundos e a aterrisagem, como eu previa, foi catastrófica! O XR3 bateu primeiro “de bunda” e o parachoque traseiro afundou na terra, da mesma forma que as rodas traseiras entraram nos paralamas. Com a frente, aconteceu exatamente a mesma coisa.  

Foto: reprodução/Revista Quatro Rodas

O XR3 terminou se desalinhando por completo: cada roda ficou apontando para um lado. O carro foi parando lentamente como se estivesse destroçado. E o pior é que a realidade não estava muito longe desse fato: quando fui descer, percebi um vão entre a porta e o teto, no qual poderia ser colocado dois ou três dedos. Isso significou, na prática, que até o monobloco ou a carroceria tinham sido seriamente danificados na tal aterrisagem. O infeliz do XR3 mal tinha chegado aos 2000 km é já estava com o atestado de óbito em seu prontuário.  

Quando telefonei ao meu chefe para relatar os fatos, quase fui demitido. Ele me deu uma tremenda bronca dizendo que nunca devemos cair na conversa de fotógrafos, pois eles sempre buscam a melhor imagem sem se preocupar com as consequências. Descobri também que, nem o Diretor de Redação nem tão pouco o Redator-Chefe, tinha pautado a foto de um carro voando, pois sabiam do risco que isso representava.

Ford Escort XR3 1987 – Foto: Ford/divulgação

 

Na realidade, o fotógrafo deveria apenas fazer boas fotos de ação, que era a proposta da versão esportiva do Ford. Essa foi a primeira e última vez que cai no canto da sereia! E essa minha falha custou um Escort XR3 novinho.  

Para os leitores da revista, o abre da matéria ficou sensacional, com a foto de página dupla do XR3 voando no espaço, como se fosse um pássaro ou um avião. Mas só quem viveu os bastidores dessa aventura é que sabe o quanto ela custou: puxões de orelha, advertências e até um XR3 praticamente perdido. Uma lição e tanto.