Lei Gong, deus do trovão, ou espécie de Thor chinês, era um homem mortal que, quando comeu pêssegos mágicos, tornou-se um humano com asas, além de possuir um martelo capaz de criar trovões. Assim como na mitologia, a China passou de uma indústria de carros comum para algo fantástico e hoje dita o futuro do setor automotivo. Se em outrora os ventos da boa nova vinham principalmente de salões como os de Detroit ou Frankfurt, agora eles são soprados de Xangai.

Pessoas observam o carro esportivo U9 da Yangwang, uma marca de luxo da gigante chinesa de veículos elétricos (VE) BYD, durante um dia de imprensa no Salão do Automóvel de Xangai, China, em 23 de abril de 2025
Pessoas observam o carro esportivo U9 da Yangwang, uma marca de luxo da gigante chinesa de veículos elétricos (VE) BYD, durante um dia de imprensa no Salão do Automóvel de Xangai, China, em 23 de abril de 2025 – Foto: REUTERS/Go Nakamura

O início

No início dos anos 2000, as montadoras chinesas não eram capazes de rivalizar com as ocidentais. A percepção levou o governo a explorar um “oceano azul”, que era a dos carros elétricos, mesmo sendo algo ainda nichado à época. Além disso, para a China, os veículos elétricos também tinham o potencial de resolver dois grandes problemas: conter a poluição e reduzir a dependência do petróleo importado.

“Na virada do milênio, a China queria desenvolver seu mercado automotivo. Porém, se eles fossem investir nos carros que sempre faziam, que existiam ao redor do mundo, eles iam competir com a capacidade de produção dos americanos, iam competir com os veículos europeus, principalmente os premium e os veículos mais acessíveis, iam competir com a qualidade do japonês e dos coreanos. Então, eles precisavam criar alguma coisa diferente para poder competir sem um grande nível de concorrência. Então, eles pensaram, nós vamos ter a necessidade de diminuir a emissão de CO2, vamos partir para eletrificação e para veículos a bateria. Eles autorizaram muitas startups a investirem muito nesse segmento. Hoje, eles estão dez anos à frente na construção de baterias. Cerca de 90% das baterias utilizadas nos veículos elétricos ou plug-ins são de origem chinesa”, explica Cassio Pagliarini, CMO da Bright Consulting, empresa especializada em consultoria automobilística.

Geely EC7 – Foto: Oswaldo Palermo

O jogo mudou de fato quando Wan Gang, um engenheiro automotivo que trabalhou para a Audi na Alemanha por quase uma década, tornou-se ministro da Ciência e Tecnologia do país em 2007. Especialistas do setor atribuem a ele a decisão nacional de apostar tudo nos veículos elétricos. Desde então, o desenvolvimento desses modelos foi priorizado. Ele é considerado, por muitos especialistas, o “pai dos carros elétricos na China”.

Foi então que, a partir de 2009, o país começou a conceder subsídios financeiros em massa a startups e empresas associadas à cadeia de veículos elétricos para a produção de ônibus e automóveis. Não é à toa que o ano foi de fato o ponto de virada para a China. Em 2009, ela se tornou o maior mercado automobilístico do mundo, quando suas vendas ultrapassaram as dos Estados Unidos. Com um crescimento de 45% ante o ano anterior, o país comercializou 13,5 milhões de automóveis – enquanto os EUA venderam 10,4 milhões de unidades no mesmo período.

Para se ter uma ideia do que é o mercado de carros chinês atualmente, hoje ele vende mais de 31 milhões de unidades por ano (2024) – quase o dobro do americano (16 milhões) e 12 vezes mais que o brasileiro (2,6 milhões), segundo informações das associações de montadoras de cada país.

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Wan Gang, ex-ministro da Ciência e Tecnologia da China, fala durante uma coletiva de imprensa realizada à margem do Congresso Nacional do Povo em Pequim, China, sábado, 11 de março de 2017
Wan Gang, ex-ministro da Ciência e Tecnologia da China, fala durante uma coletiva de imprensa realizada à margem do Congresso Nacional do Povo em Pequim, China, sábado, 11 de março de 2017 – Foto: AP/Ng Han Guan

Maturação do mercado chinês

Ao longo dos anos, o que aconteceu foi que a China passou a ter carros de ponta, com visuais mais interessantes e bem mais baratos do que os ocidentais ofereciam. Outro aspecto é que, como forma de evolução desse processo, as chinesas começaram a fazer automóveis “tipo exportação” ao gosto do público ocidental.

Quem não se lembra do Chery QQ no Brasil, um subcompacto que foi vendido entre 2011 e 2019. Ele era barato, com design estranho, tinha apenas o básico e uma qualidade duvidosa – bem criticado por quem acompanhava o setor à época. Para citar o mesmo grupo, a Omoda & Jaecoo, marca premium da Chery de híbridos e elétricos, que chegou ao Brasil em abril deste ano, foi criada para o mercado apenas de exportação, com identidade própria e que conta com tecnologias superiores e preços mais baratos às opções de mesma categoria comercializadas por aqui hoje.

Chery QQ (Foto: Divulgação)

Os ocidentais, para vender produtos na China, também adaptaram seus produtos para aquele mercado. A Audi, para citar, criou a marca AUDI sem argolas e com identidade e características para aquele público.

“Eu enxergo a China produzindo veículos para o Ocidente. Eu não enxergo o Ocidente produzindo carros para a China. O que pode acontecer é os fabricantes exclusivos ocidentais indo fabricar lá na China para os chineses, como a Volvo está fazendo, como a BMW está fazendo, como outras empresas de veículos sofisticados estão fazendo”, ressalta o especialista da Bright Consulting.

Um Audi E5 Sportback é exibido durante um dia de imprensa no Salão do Automóvel de Xangai, na China, em 23 de abril de 2025. REUTERS/Go Nakamura

Guerra de preços

Porém, nem tudo são flores. Com o crescimento exponencial veio também um problema: a guerra de preços. As mesmas políticas governamentais que impulsionaram o crescimento e a inovação na indústria automobilística estão causando prejuízos em toda a cadeia de vendas doméstica. 

“Hoje existe um excesso de capacidade na China, um excesso de produção. Eles esperavam colocar veículos nos Estados Unidos e na Europa, só que isso foi parcialmente bloqueado por causa das barreiras fiscais. Então, eles estão vindo para o Brasil, para outros mercados e liquidando os veículos. Eles têm um estoque ainda grande de veículos elétricos por lá e eu acredito que essa essa guerra de preços deve continuar por pelo menos mais um ano”, diz Pagliarini.

A maioria das concessionárias chinesas não consegue lucrar o bastante porque seus estoques estão lotados, segundo divulgado pela Reuters. Veículos indesejados aparecem em sites de mídia social no estilo TikTok em liquidações. Outros são renomeados como “usados” – mesmo que seus odômetros não mostrem quilometragem – e enviados para o exterior. Alguns acabam abandonados em cemitérios de carros. 

Um homem recarrega um carro em uma estação de carregamento de veículos elétricos em Pequim, China, em 2 de fevereiro de 2024
Um homem recarrega um carro em uma estação de carregamento de veículos elétricos em Pequim, China, em 2 de fevereiro de 2024 – Foto: REUTERS/Florence Lo

Segundo Yuhan Zhang, economista principal do China Center do The Conference Board, “eles estão se alimentando, reforçando um ao outro, e isso pode prender o mercado em um ciclo vicioso”. Essas práticas incomuns são sintomas de um mercado com excesso de oferta e apontam para uma potencial reviravolta que reflete a turbulência no mercado imobiliário e na indústria solar da China, de acordo com muitos analistas e pesquisadores do setor.

“Quando há uma diretriz de Pequim de que este é um setor estratégico, todos os governadores provinciais querem a fábrica de automóveis. Eles querem estar em boa situação com o partido”, disse Rupert Mitchell, comentarista de macroeconomia baseado na Austrália, que trabalhou anteriormente em uma startup chinesa de veículos elétricos. “No fim das contas, o que acontece é que isso faz com que o setor automobilístico existente dobre os investimentos.” 

A crise iminente tem implicações maiores para a economia chinesa, onde a indústria automobilística e serviços relacionados representam cerca de um décimo do Produto Interno Bruto (PIB).

A ociosidade do setor é impressionante: as montadoras chinesas têm capacidade fabril para produzir o dobro dos 27,5 milhões de carros feitos no ano passado, segundo a consultoria Gasgoo Automotive Research Institute.

Um depósito de carros novos em Xangai em setembro. As políticas que fizeram da China uma potência automotiva global agora estão causando turbulência no setor. REUTERS/Go Nakamura

Licenças para a exportação de veículos

Como parte do remédio para a imagem desses veículos, a China exigirá licenças de exportação para carros elétricos a partir do ano que vem, informou o Ministério do Comércio em setembro, em um movimento para reduzir a concorrência desleal e proteger a reputação das marcas automotivas do país no exterior.

Vendedores de carros elétricos deverão seguir as regras que determinam que apenas as montadoras e suas empresas autorizadas solicitem licenças de exportação. Os veículos a gasolina e híbridos já estão sujeitos ao gerenciamento de licenças de acordo com a estrutura atual do regramento.

Brasil

No Brasil, o “boom dos carros elétricos chineses” começou em 2021. Antes, 0 mercado brasileiro de automóveis basicamente tinha apenas duas marcas chinesas ativas: Chery e JAC. A primeira operava desde 2009 por aqui e, depois, em 2017, fez uma parceria com a rede de concessionárias Caoa. A segunda chegou ao país em 2011, representada pelo Grupo SHC.

No entanto, a entrada da BYD no final de 2021 com o lançamento do Tan, um SUV elétrico de sete lugares, sacudiu o mercado brasileiro. De certa forma, isso “encorajou” outras marcas a também lançarem seus produtos por aqui.

Em 2023, a GWM estreou o Haval H6. A partir daí, mais chinesas começaram a pipocar ou anunciar lançamentos e investimentos. Por outro lado, outras já saíram ou estão prestes a “dar tchau” ao Brasil.

Byd Tan
BYD Tan EV

 

Caoa Chery

A Caoa Chery conta com uma fábrica em Anápolis (GO), de onde saem os modelos Tiggo 5, 7 e 8. A marca oferece outras opções, como o iCar (100% elétrico) e o sedã Arrizo 6.

Caoa-Chery Tiggo 5X
Caoa-Chery Tiggo 5X – Foto: Caoa-Chery/divulgação

JAC Motors

A JAC Motors não tem uma fábrica no Brasil e importa todos os seus automóveis vendidos no país. Além de uma linha comercial com caminhões e vans, a marca oferece opções como o elétrico de entrada E-JS1, o SUV E-JS4 e o sedã E-J7.

JAC Hunter
JAC Hunter – Foto: JAC/divulgação

BYD

A BYD lidera o mercado de carros elétricos e híbridos no Brasil. Somente em 2025, até setembro, a marca comercializou 23.669 unidades do híbrido Song e 19.532 unidades do Dolphin Mini, segundo divulgado pela ABVE.

Fábrica da BYD em Camaçari (BA)
Fábrica da BYD em Camaçari (BA) – Foto: Divulgação/BYD

Embora a BYD já estivesse presente no Brasil desde 2015 com fábricas de ônibus e painéis solares, a montadora iniciou a operação de sua planta em Camaçari (BA), que era da Ford, em julho deste ano.

O local vai operar sob o sistema SKD por 12 meses até ter uma produção completa. De lá estão confirmados para sair os seguintes modelos: Dolphin Mini, Song Pro e o King – além da cotada picape Shark. Hoje, a BYD comercializa nove modelos, em diferentes versões.

Produção BYD Camaçari (BA)
Produção BYD Camaçari (BA) – Foto: Mauro Balhessa

Great Wall Motors (GWM)

A GWM atualmente tem o terceiro modelo eletrificado mais comercializado do Brasil, o Haval H6, com 19.116 emplacamentos realizados em 2025, até setembro. Além dele, o fabricante tem ainda o hatch elétrico Ora 03, os SUVs Tank 300 e Haval H9,  e a picape Poer.

GWM Haval H6 HEV One
GWM Haval H6 HEV One – Foto: GWM/divulgação

A montadora inaugurou uma fábrica em Iracemápolis (SP) em 15 de agosto desse ano. A produção nacional da Great Wall começa com todas as versões do Haval H6 já comercializada no país, além do SUV H9 e da picape Poer.

GWM Haval H9 e Poer
GWM Haval H9 e Poer – Foto: GWM/divulgação

GAC

A GAC desembarcou oficialmente no Brasil em maio deste ano com cinco lançamentos: um sedan médio elétrico (Aion ES), um SUV médio elétrico (Aion V), um SUV que mais parece uma minivan elétrica (Aion Y), um SUV coupé grande e elétrico (Hyptec HT) e um SUV médio híbrido (GS4).

A companhia prevê a instalação de uma fábrica nacional nos próximos anos e a produção de até 15 modelos nacionais até 2030.

GAC Aion ES
GAC Aion ES – Foto: Lucca Mendonça

Omoda & Jaecoo

A marca que pertence ao grupo Chery chegou por aqui em abril de 2025, com as opções Omoda E5 e o Jaecoo J7.

Jaecoo 7
Jaecoo 7 – Foto: Mauro Balhessa/IstoÉ

Ela pretende ter uma fábrica no Brasil em 2026 e não descarta uma planta em Jacareí (SP), que era da Chery – outros locais ainda estariam em avaliação, segundo apurado.

Omoda E5
Omoda E5 – Foto: Mauro Balhessa/IstoÉ

Geely

Geely está oficialmente de volta ao Brasil, agora em parceria com a Renault. A chinesa retornou com o EX5, utilitário esportivo 100% elétrico. 

Geely EX5
Geely EX5 – Foto: Rodrigo Mora

Neta

A Neta Auto, que vinha dando sinais que está próxima a deixar o Brasil, está com o seu site e página no Instagram fora do ar.

Zhejiang Hozon New Energy Automobile, mais conhecida como Hozon Auto, proprietária da marca chinesa de veículos elétricos Neta, entrou oficialmente em processo de falência, segundo a emissora estatal chinesa CCTV e divulgado pela agência Reuters.

Linha Neta Auto Brasil
Linha Neta Auto Brasil – Foto: Neta/divulgação

Zeekr

A marca de luxo do grupo Geely, que também detém VolvoPolestar e Lotus, para citar, apresentou o seu primeiro produto ao mercado brasileiro em outubro de 2024, o 001. Depois, ela estreou em solo nacional o X e o 7X.

Zeekr X
Zeekr X – Crédito: Divulgação/Zeekr

Seres

Com apenas seis carros vendidos no Brasil em 2025 – todos Seres 3 –, a Seres encerrou a operação por aqui.

Loja da Seres – Crédito: Divulgação

No meio do ano passado, a Seres havia interrompido as vendas de carros no mercado nacional devido a uma reestruturação estratégica.

A marca chinesa tinha um plano inicial de fazer vendas diretas pelo seu site e depois substituiu por uma estratégia de rede de concessionárias. O fabricante disse até que uma lista com 15 grupos manifestaram interesse, mas não foi para frente.

Seres
Seres 3 – Crédito: Divulgação/Seres

Leapmotor

O primeiro lançamento no Brasil da marca chinesa da Stellantis, a Leapmotor, será o C10, que ocorrerá ainda em 2025. Além de uma opção totalmente elétrica, a grande novidade do modelo é que ele vai adotar um novo sistema de propulsão chamado de “REEV”.

O conjunto inclui um motor 1.5 a gasolina, que opera apenas como gerador, carregando as baterias de tração com 28,4 kWh de capacidade. Elas, por sua vez, fornecem energia ao motor elétrico que traciona as rodas traseiras, gerando 218 cv de potência com 32,6 kgfm de torque.

Leapmotor C10
Leapmotor C10 – Foto: Divulgação

Futuro

Mas tem espaço para tantos carros e marcas chinesas no Brasil, na China ou no mundo? De acordo com a consultoria AlixPartners, apenas 15 das 129 marcas de veículos elétricos e híbridos do país asiático serão financeiramente viáveis até 2030. 

“Eu vejo as associações [fabricantes] ocidentais com empresas chinesas para capitalizar suas boas marcas, seus ganhos de mercado, que todas elas têm têm mercados para defender. Por exemplo, vejo a Stellantis aqui no Brasil, ela tem uma participação bem robusta de mercado aqui. Então, ela tem que se proteger da entrada de chineses, muito provavelmente se aliando a a outros chineses, como eles fizeram com a com a Leapmotor. Não imagino outra solução. Nós vamos ter empresas ocidentais que vão sucumbir, nós temos empresas chinesas que vão sucumbir e serem absorvidas por outras empresas chinesas, porque eles têm bastante hoje em dia”, completa Pagliarini.

Wuling Starlight S EV – Foto: Wuling/divulgação

Com informações da Reuters*