Como jornalista automotivo, tenho que dirigir muitos e muitos quilômetros para poder avaliar os carros com propriedade. Nós, que escolhemos essa profissão, temos que conhecer diversos carros diferentes para poder comparar as ofertas do mercado e levar a você, leitor, informações que o auxiliem a fazer uma boa compra, de acordo com suas necessidades, preferências e disponibilidade financeira. 

Nenhuma publicação especializada em carros, entretanto, tem condições de comprar todos os veículos que avalia. Por isso, somos dependentes, basicamente, de duas situações.

Ou dirigimos os carros nos tradicionais eventos de lançamento – quando depois da apresentação das características técnicas e outras informações seguimos para um test-drive programado pela marca –, ou recebemos os carros da “frota de imprensa” diretamente na redação, com um contrato que nos permite avaliar o modelo, em média, por uma semana.Dirigir as novidades nos eventos pode até ser uma experiência legal e completa, dependendo das versões do carro à disposição e, principalmente, do tamanho e das características de piso e relevo e das rotas escolhidas pela organização (ou a eventual liberdade para sair delas). Algumas marcas de fato mandam muito bem nesses test-drives. Mas frequentemente a coisa não funciona tão bem, em grande parte por algumas das razões que aponto nos tópicos abaixo.

Claro que conviver com os carros por uma semana inteira é muito melhor, pois além de usá-los no cotidiano – colocando coisas no porta-malas, carregando pessoas, estacionando por aí, circulando em cidades e estradas, no sol, na chuva e na neblina – podemos os submeter a nossos próprios testes, que julgarmos mais importantes para cada modelo. Pena que algumas vezes esse contato mais profundo só ocorre depois de já termos “sido forçados” a escrever a primeira avaliação baseados naquele contato inicial, nem sempre adequado e completo (e então, em nova avaliação ou em um comparativo, “somamos” essas qualidades ou defeitos ao que já havíamos entregado ao leitor antes). E mesmo esse contato mais longo às vezes não é com a versão ideal ou encontra outros problemas. Vamos lá.

NOS EVENTOS:

Muita diversão e pouca direção
Avaliar um carro exige do jornalista automotivo muitos quilômetros ao volante, e em percursos apropriados. Mas nem sempre é o que acontece. Frequentemente somos chamados a viagens para lugares incríveis e paisagens deslumbrantes. Ficamos hospedados em hotéis de luxo ou resorts de cinco ou mais estrelas, almoçamos e jantamos em restaurantes caros, premiados pelo Guia Michelin. Ganhamos “brindes oficiais do evento” (que, acredite, incluem até mesmo computadores e iPads), e, à noite, há shows exclusivos com artistas famosos, regados com bebida à vontade.

Na hora do test-drive, porém, que decepção! É muita diversão pra pouca direção. Com frequência o percurso é curto demais e vários jornalistas viajam no mesmo carro, se revezando ao volante. Em um evento recente, depois de dois voos e não-sei-quantos ônibus, após viajar por um dia e meio, tive a oportunidade incrível de guiar o carro por 15 minutos (!!). E, para piorar, em uma estrada reta e plana. Além da perda de tempo, fica difícil para o jornalista automotivo escrever um bom texto. Claro que dá pra discorrer sobre as características técnicas, o posicionamento e o mercado. Mas não dá pra falar muito da experiência ao volante – justamente o que mais importa!

Pode parecer que não faz sentido essa atitude das marcas, mas dessa forma há jornalistas automotivos mais criteriosos acabam não tendo tempo suficiente para “encontrar” os pontos negativos do carro – e aqueles mais inexperientes e/ou menos sérios acabam – felizes e deslumbrados com tantas paisagens, diversões e presentes – tendo uma visão bem mais “generosa” do carro lançado. E, na falta de test-drive que lhes mostre melhor o carro em si, acabam repetindo os pontos positivos que, esses sim, claro, estão bem destacados no release (material sobre o carro escrito pela própria montadora para auxiliar os jornalistas).

Teste-drive na serra. Mas só descendo, é claro.
Outro truque bem frequente em eventos é fazer test-drives “sob medida” para o veículo lançado. O carro é ruim na cidade? Faça um percurso apenas rodoviário. É fraco na estrada? Vamos andar só na cidade. É ruim de curva? Vamos pegar o máximo de retas. Outro dia fui a um evento de lançamento de um carro com motor bastante fraco para seu porte e peso. O test-drive saiu de São Paulo e desceu a serra em direção ao litoral. Na hora de voltar, os carros ficaram lá na praia os jornalistas automotivos entraram em uma van para subir a serra de volta pra São Paulo. Afinal, pra baixo, todo santo ajuda, não?

Percurso incompatível

Às vezes a escolha do roteiro do test-drive é incompatível, mas não com o objetivo de esconder deficiências do carro do jornalista automotivo. Talvez seja apenas por simples falha de planejamento. Um test-drive recente de uma nova picape, por exemplo, foi realizado com um percurso todo de asfalto. Considerando o uso mais comum desse tipo de veículo, não faz sentido. Desconfiei se tratar de um truque clássico, o citado acima, mas, depois que o carro veio para a redação e peguei longos trechos de terra, vi que era excelente, sim, para rodar na terra. Foi só mau planejamento mesmo.

“Ah, mas esse é pré-série”
Essa é uma desculpa frequente para problemas e deficiências encontrados durante o test-drive. O jornalista automotivo acha um acabamento mal-feito, uma trepidação fora do normal ou um recurso que não funciona muito bem e logo vem a explicação: “Ah, mas esse carro é pré-série” (produzido antes do começo da produção oficial em série, ainda sujeito a alguns ajustes na linha). Diante da pressa em apresentar o carro à imprensa antes do início das vendas, pode, de fato, ser verdade. Ou apenas uma desculpa para defeitos que continuarão “de série” na versão que você colocará na sua garagem.

“As clínicas apontaram”
Outra desculpa bastante frequente – e raramente verdadeira – vem principalmente dos departamentos de Marketing. O jornalista automotivo o porquê de um carro não ter faróis de xenônio ou LED ou outro equipamento e a resposta é “As clínicas apontaram que o consumidor desse segmento não liga muito pra isso” (clínicas são pesquisas com consumidores feitas durante o desenvolvimento do carro). Aí uma semana depois você vai ao lançamento de um outro modelo, de exatos mesmos preço e segmento, e o tal item está ali presente. “É uma exigência do cliente dessa categoria”, explica o gerente de marketing. Então tá.

NOS EVENTOS E NA FROTA DE IMPRENSA:

Só versões “top” (e configurações que não “existem”)
É raro um carro que tenha como versão mais vendida a topo de linha. Mais raro ainda que seja a topo de linha com todos os opcionais que estão disponíveis. Hatches compactos de mais de R$ 70.000, hatches médios de mais de R$ 100.000… Eles são bem comuns nos eventos e nas frotas de imprensa, mas certamente não nas ruas. Têm equipamentos de segmentos superiores, acabamento bem mais caprichado, materiais mais nobres e até mesmo partes com acabamento onde as versões mais vendidas expõem o metal da lataria. Causam uma impressão geral muito melhor do que as versões de entrada. Claro que, em teoria, eles podem existir. Mas não são os que você vai comprar.

Pneus murchos
Essa pode ser por simples falta de cuidado das equipes que cuidam das frotas de imprensa. Mas, dizem as más línguas, pode ser mesmo intencional. Um carro com pneus mais murchos do que o recomendado fica bem mais macio, passando ao jornalista automotivo a sensação de ter suspensões mais confortáveis do que de fato são. Claro que a medida acaba prejudicando discretamente o consumo, mas, dependendo do modelo – e isso costuma ocorrer principalmente nos modelos menos adaptados às nossas ruas e estradas –, o mais importante é que o jornalista elogie o rodar macio do carro. Mesmo que critique o consumo.

Gasolina mais pura
Usando um software que conversa com a central eletrônica do carro e indica a quantidade exata de etanol no tanque, percebemos que alguns modelos têm aparecido na revista com menos etanol misturado à gasolina do que o combustível encontrado nos postos. Em vez dos 27% que manda a lei atualmente, alguns apareceram com apenas 20% do combustível vegetal. E como a gasolina tem maior poder calorífico que o etanol, quanto menos desse último combustível no tanque, melhor o consumo do carro. Mesmo que essa diferença seja bem discreta, faz efeito. E não é um truque legal.

“Cuidados especiais”
Há alguns anos, uma publicação nacional encontrou um boa quantidade de espuma “recheando” as portas e o painel de um carro. E elas, obviamente, não eram encontradas nos modelos que de fato eram entregues ao cidadão comum. O objetivo, claramente, era a redução dos ruídos ouvidos na cabine. Em outra ocasião, um modelo foi entregue à outra publicação com um recado guardado, por engano, no porta-luvas. Tratava-se de um aviso para a linha de produção de que aquele carro seria usado para a frota de imprensa, e então deveria ser montado de forma mais caprichada que os demais. Em algumas marcas, o departamento de engenharia chega a desmontar e remontar partes do carro para que ele fique perfeito. Algumas marcas, dizem, mudam até mesmo a calibração de componentes do carro. Seria ótimo se esses cuidados especiais fossem tomados com todas as unidades. Mas não são.

Pneus melhores que os de série
Às vezes o carro que nos dão para avaliar está equipado com uma marca de pneus de maior qualidade – e muito mais cara – que a colocada na linha de montagem. Assim, o modelo que avaliamos acaba freando mais e fazendo curvas bem melhor do que aquele do “mundo real”. Claro que você pode até optar por colocar a mesma marca no seu carro. Mas não vai querer jogar seus pneus novinhos fora e gastar mais dinheiro logo após comprar seu zero-quilômetro, não é?

CONCLUSÃO:
Claro que nós, jornalistas automotivos com mais experiência, não caímos nesses truques. Não nos deslumbramos com hotéis e paisagens. Não tiramos conclusões sobre desempenho descendo a serra. Não avaliamos o que o test-drive não permitiu sentir (esperamos uma nova chance de guiar o carro). Não aceitamos facilmente as explicações dos marqueteiros. Pesquisamos como são as versões básicas, seja achando fotos, analisando tabelas de itens de série ou indo a concessionárias. Calibramos todos os pneus, conferimos os combustíveis, procuramos por características incomuns. Sabemos “descontar” e decifrar esses truques para informar melhor. Lutamos o tempo todo para mostrar pra vocês tudo o que as marcas tentam disfarçar ou esconder.

[texto publicado originalmente em 2017, hoje, com a invasão do setor pelos influenciadores, está mais atual que nunca; por isso o republicamos]