24/06/2020 - 19:00
Como se compara um Fórmula 1 atual com aquele com o qual Emerson Fittipaldi foi bicampeão nos anos 1970? Não fosse a pandemia de Covid-19, este final de semana ocorreria o GP de Paul Ricard, na França. Foi lá que, a convite da MOTOR SHOW e da Renault, que o bicampeão votou a acelerar um Fórmula 1 — 42 anos depois de correr lá pela última vez.
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Isso foi em 2013. Agora, faz 7 anos dessa experiência, e 20 anos que Emerson Fittipaldi correu pela última vez na F1. Aproveitamos o GP que não haverá para republicar, agora na íntegra, o depoimento que o Emerson deu, com exclusividade, a nosso editor Flávio Silveira — que também teve a chance de acelerar o F1 em um programa aberto a quem está disposto a pagar (leia aqui o depoimento dele).
Para saber mais sobre o programa iRace, parceria Lotus-Renault, aqui
O CONVITE
A última vez que andei de Fórmula 1 pra valer numa pista foi em 1980, meu último ano na F-1. Depois disso, foram só eventos de demonstração – a Lotus 72 e a McLaren M23 – mas não pra tentar chegar no limite, sentir o carro. É bem diferente. Então quando MOTOR SHOW e Renault me convidaram para pilotar a Lotus, o que passou na minha cabeça?
Paul Ricard é uma pista que conheço muito. Pilotei lá pela primeira vez em 1971, quando ela foi inaugurada, com a Lotus 1972, a Gold Leaf, o carro com o qual havia vencido em 1970. Essa corrida foi em junho de 1971, inauguração do circuito grande de Paul Ricard, com a Mistral inteira. Quando confirmaram, ficou aquilo na minha cabeça: depois de tantos anos, vou voltar a pilotar um F-1 em Paul Ricard, uma pista da qual tinha ótimas memórias.
Fiquei muito entusiasmado, não só pela história que tinha com Paul Ricard, mas porque Paul Ricard é um circuito muito avançado, moderno, ainda hoje. Na minha opinião, dos anos 1970, é o único que ficou. Hoje dá para fazer um GP lá a hora que quiser. Fiquei muito contente, primeiro por ser um lugar seguro – as áreas de escape são enormes, e você pode cometer um erro – e segundo porque sempre tive esse sonho de pilotar um F-1 atual.
A EXPECTATIVA
Quando cheguei na véspera, segunda a noite, já tava indo pro hotel numa grande expectativa. Estava muito curioso, me sentindo um menino indo para a Disney. Ia experimentar um F-1 moderno como se deve experimentar – não só como andei no carro do Schumacher em 2006, em Goodwood, 30 segundo no molhado… Minha expectativa era muito grande.
Na terça de manhã acordei com um frio na barriga, uma ansiedade… Não tive medo, mas muita ansiedade de voltar a um cockpit de um F-1 atual, um carro rápido – aquela adrenalina que eu sabia que ia gostar muito. Uma sensação muito emocionante.
Por isso fui cedo pra pista, acompanhar o David Valsecchi, piloto de teste da Lotus e campeão da GP2 – provável substituto do Kimmi Raikonen. Cheguei cedinho para ver tudo que estava acontecendo, conversei com o chefe da equipe. Pedi para me ensinarem tudo que o carro tinha disponível para que ficasse tecnicamente informado, mesmo que não fosse acionar nada no volante. Queria entender tudo que o carro tinha de novo, que na minha época não tinha. O Lotus 72 não tinha nada de eletrônico, era tudo mecânico.
ENTRANDO NO MONOPOSTO
Depois, o primeiro passo era ter o banco em uma posição boa. A posição de dirigir hoje é muito diferente da época, o pé do piloto fica muito mais alto. O carro tem o nariz muito alto, e você só tem o pedal do acelerador e do freio, os dois bem grandes. Sabia que precisava estar muito bem acomodado, ter certeza que vai acelerar sem ficar na ponta do pé, que os cotovelos não vão bater… o cockpit tem de estar muito bem adaptado, e tivemos muito pouco tempo para isso.
Testei quatro bancos. O do Davide ficou muito largo; o do Nicola Prost ficou muito pequeno; o terceiro também não funcionou. O que ficou melhor foi o quarto, do Lucas di Grassi. A parte da cintura para baixo encaixou bem, mas fiquei meio afundado no cockpit. Aí colocaram uma almofada atrás, subi um pouquinho.
OS COMANDOS
Comparando com os carros da minha época, o volante fica mais perto – os braços ficam mais dobrados -, a perna fica bem alta, com os dois pés muito próximos um do outro – porque o nariz é muito estreito – e não há embreagem. Além disso, o pé esquerdo antigamente tinha local onde ficava apoiado, e estranhei bastante esse F-1 de agora não ter nada. Você segura um pouco no calcanhar, mas o pé fica meio apoiado no freio também. O volante é de tamanho parecido, apesar de não ser completo – é quase um manche.
Além disso, a mudança de marcha para cima e para baixo, na mão, é muito prática, muito fácil. A grande diferença é ter as duas mãos no volante o tempo todo. Você pode mudar de marchas nas curvas, tendo um controle de volante muito mais suave. Na minha época você tinha que tirar a mão para mudar a marcha e segurar o volante com um braço só – e dificultava muito qualquer correção. Ficou muito mais fácil controlar o carro.
O que achei que traz uma grande dificuldade aos pilotos atuais é o volante, com todos aqueles controles. Você ajusta tipo de pneus, diferencial do carro, mapa de gasolina… tudo isso é fantástico, mas deve ser difícil para um piloto de hoje ajustar tudo isso entre uma curva e outra. Ele tem que ter uma cabeça como se fosse um simulador.
A ELETRÔNICA
É muita eletrônica hoje em dia. As dificuldades da minha época eram muito diferentes das dificuldades atuais. Hoje o piloto precisa operar todos esses controles. Vai entrar num cotovelo, deixa o diferencial mais aberto; numa curva rápida deixa ele mais bloqueado…
Com toda essa eletrônica, o piloto consegue adaptar mais o carro a cada tipo de curva, enquanto na minha época o piloto é que tinha que se adaptar às curvas. Um piloto top hoje, os seis ou sete melhores, no nível de Schumacher, Alonso, Massa, com certeza vai ajustando aquilo o tempo todo. E isso é difícil, muito difícil.
SAINDO DOS BOXES
Antes de sair do box, eu estava pensando… o carro estava sem controle de tração, como manda o regulamento. São 800 cv e 600 kg – o que dá uma relação de 800 g/cv – uma relação excelente. E sabia que o carro ia ter muita pressão aerodinâmica. Examinando um F-1 de hoje, com todas aquelas abas, a asa, já dá para saber que a pressão aerodinâmica é impressionante.
Sabia que ia ter muita aderência aerodinâmica, principalmente a partir dos 150/180 km/h. Já estava mentalmente preparado para isso, e sabia que sem controle de tração e com toda essa potência, o carro ia arrastar muito a roda saindo dos cotovelos de baixa velocidade. Mas aí o Davide e o Nicola me avisaram que ia ficar impressionado com os freios. E fiquei.
PRIMEIRAS SENSAÇÕES
Na minha época você dava um toque no pedal do freio e depois botava força; agora é o contrário: você dá uma pancada no pedal e depois vai tirando, dosando para entrar na curva. E me avisaram que quando achasse que não dava mais para frear, quando achasse que o carro não ia mais parar, aí era hora de frear que o carro parava. Disseram que não ia chegar no limite do freio – e tinham razão.
Estava numa grande expectativa, com borboletas no estômago. Engatei a primeira e fui soltando a embreagem bem devagar. Ela é muito parecida com a embreagem de uma moto. Foi muito fácil. Na saída dos boxes já dei uma acelerada – primeira, segunda, terceira – e senti a relação peso/potência me empurrando no banco. Só tive certa dificuldade por estar meio baixo demais no banco, limitando meu campo visual.
Entrei na primeira curva devagar, fiz a chicane… e na reta oposta já fiquei muito impressionado. No fim dela há uma curva muito rápida, a Signes, que fiz em sétima marcha a quase 300 km/h. O Davide tinha me dito para fazê-la com o pé embaixo, e eu fiz. O carro acelera muito até 230, 240 km/h.
Depois disso há tanta pressão aerodinâmica que ele começava a ficar meio amarrado. A sensação era de que o motor estava perdendo potência. Primeira marcha, segunda terceira, quarta… ele acelera muito rápido. Depois na quinta, sexta, sétima… ele demora mais para ganhar velocidade. Parece até que as marchas ficam mais longas.
PROCURANDO O LIMITE
Dei a primeira volta bem devagar. Na segunda já comecei a acelerar mais. Senti que nas curvas de baixa velocidade o carro destracionava muito fácil, pois não havia pressão aerodinâmica. E aí dei até umas escapadas de traseira. O carro perdia aderência por falta de pressão aerodinâmica. Então quanto mais coragem o piloto tiver para entrar rápido na curva, mais preso ao chão o carro vai estar.
Essa foi minha grande dificuldade para chegar ao limite do carro. O carro tinha tanta aderência nas curvas de média e alta velocidades, que dei umas cinco voltas e me pediram para entrar nos boxes. Aí o chefe da equipe me perguntou se queria sair para conversar, tomar uma água. Eu me recusei, disse que queria conversar, mas dentro do carro. Não quis sair dali. Iam fechar a pista as seis da tarde, e eu não queria perder tempo. Queria dar mais voltas.
Depois dessa parada, comecei a frear cada vez mais dentro das curvas. Antes tava tirando o pé, no fim da reta, na placa de 100 m. O carro freava demais. Em todas as curvas, era a mesma história: quando me aproximava, parecia que estava muito rápido; quando entrava nelas, via que estava era lento. Sobrava aderência e estabilidade.
Na volta seguinte tentava entrar mais rápido, e assim por diante. Comece a frear nos 70 m, e ainda entrava lento demais na curva. Fui aumentando a velocidade, mas não cheguei no limite.
TÉCNICA DA INDY
Na Signes, que era uma curva rápida, usava uma técnica da F-Indy. Entrava com o acelerador travado, sem tirar o pé, para que não houvesse diminuição de potência e transferência de peso – desequilibrando o carro. Ao mesmo tempo, ia segurando um pouco no freio, com o pé esquerdo. Um reflexo diferente do que tem o piloto de F-1.
Estranhei os pneus com pouco pressão – 21 na frente e 19 atrás. Quando a pressão é tão baixa, a roda mexe dentro da carcaça do pneu. Dá uma sensação de que o carro vai sair na curva, uma sensação falsa de falta de aderência. No começo, me assustei com isso.
Nicola Prost havia me alertado que o carro de F-1 hoje, quando sai, sai com tudo. Tive que desligar esse alerta no meu cérebro. Saía dessa curva e entrava numa curva longa, parabólica, como Monza. Foi difícil chegar no limite dela. Não cheguei. Quanto mais rápido entrava, mais o carro aceitava.
VOLTA RÁPIDA
Dei mais cinco ou seis voltas, parei no box. Tava com um tempo muito longe ainda do Davide. Ele virou 1m10s, e eu estava virando 1m21s/1m20s. Me perguntaram como estava o equilíbrio do carro. Eu disse que estava ótimo, pois eu estava abaixo do limite do carro, então o carro tava muito neutro. Vi que tinha melhorar na Signes e na freada do fim da reta.
Na última volta, passei da placa dos 50 m, pronto para passar reto na curva. Dei uma pancada no freio, ele freou e entrou lento na curva. Ainda estava bem abaixo do limite, mas foi minha volta mais rápida. Virei 1m17s, 7s ainda atrás do Davide. Isso em 18 voltas. Se ficasse mais um dia inteiro lá, ia chegar a uns dois, três segundos dele…
ONTEM E HOJE
No fim, o carro me impressionou por ser muito rápido, ter muito freio e muita estabilidade. O carro de F-1 hoje é muito fácil e muito rápido para guiar, mas acho que a grande dificuldade de um piloto hoje em dia está nos últimos oito décimos, no último meio segundo. É muito difícil tirar esse tempo, o cara tem que ir no limite dele, da pista e do carro. Eu usei mais ou menos 80% do que o carro oferecia.
Depois de chegar no limite do carro, teria ainda que encontrar os limites da pista. Não passei nas zebras em nenhum momento, por exemplo. Isso também é muito diferente da minha época. Hoje o F-1 têm três molas e amortecedores – nas laterais e no meio do carro. Assim, a roda que pega a zebra sobe sem mexer muito o chassi. E usando as zebras você “alarga” as curvas.
A grande diferença foi o que o carro freia dentro de curva, o que tem de aderência aerodinâmica e a disponibilidade de acertos e ajustes no volante. Acho que é a grande dificuldade de um piloto hoje numa corrida é utilizar tudo isso que está disponível no carro.
A IMPORTÂNCIA DO PILOTO
Apesar de toda essa eletrônica, ainda acho, diferentemente de muitos, que quem ganha ou perde a corrida ainda é o piloto. Apesar de ser um máquina fantástica, o cara tem que saber controlar tudo isso, usar direito. É muito fácil um piloto inexperiente virar um tempo rápido hoje, muito mais do que na minha época. Nos anos 1970 a gente lutava muito com o carro, brigava com o carro o tempo todo. Hoje ele é muito mais adaptado a cada parte da pista.
Na minha época a diferença da melhor curva do carro para a pior era muito grande. Hoje essa diferença se reduziu muito. O carro se adapta muito melhor à pista, é muito mais equilibrado. E por isso a pilotagem é muito mais precisa, muito mais limpa. Na minha época havia mais surpresas e imprevistos, havia mais adrenalina. Você brigava mais com o volante, tomava um susto quando o carro ficava de lado em uma curva rápida. Hoje em dia o carro assusta menos. A evolução da F-1 foi fantástica.
Se você pegar um dos cinco melhores piloto de hoje e levá-los para os anos 1970, os caras iam andar rápido. E vice-versa. Ia ser um desafio interessante. As dificuldades são diferentes, mas ainda é preciso muito talento. Dar uma volta rápida com um carro da minha época era mais difícil, lógico. Você arriscava mais, tinha que improvisar mais. Hoje o carro é muito equilibrado. Queria ficar guiando uma semana esse carro. Não queria parar nunca mais.
Hoje o piloto fica mais focado no equilíbrio e na pilotagem dele do que nas informações do carro, que é passada pela telemetria. Na minha época eu vinha elaborando, na volta de desaceleração, o que falar para o engenheiro. Agora ele já tem todas as informações em tempo real pelos computadores.
ALEGRIA
Minha conclusão é que o avanço da tecnologia foi fantástico. Se pudesse escolher entre correr com os F-1 da minha época e os de agora, sou muito mais os de agora.
Foi muita emoção, e muita memória que veio à tona. O cheiro, a pista de Paul Ricard… foi uma experiência fantástica. Quero ir para um Grande Prêmio na semana que vem! Foi espetacular, um enorme presente.