31/10/2020 - 8:26
Você já ouviu falar da Fordlândia? “Não estamos indo para a América do Sul para ganhar dinheiro, mas para ajudar a desenvolver essa terra maravilhosa e fértil”. O executivo encarna a figura do filantropo Henry Ford, quando, em maio de 1928, concede entrevista à “The Magazine of Business” – uma renomada revista sobre indústria e economia com redações nas cidades de Nova York, Chicago e Londres –, cujo título sugere, não sem certa malícia implícita, a resposta à pergunta que coloca: “Henry Ford é um gênio?”.
O tema da conversa é a construção, do zero, de uma cidade industrial rodeada de plantações de seringueiras destinadas a abastecer suas fábricas de automóveis em Michigan. Um projeto ambicioso e bastante complicado, que exigiu um investimento inicial de US$ 2 milhões.
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A FORDLÂNDIA ERA UMA CIDADE COMPLETA, COM CAMPO DE GOLFE, IGREJA, SALÃO DE DANÇA E VILAS NO TÍPICO ESTILO YANKEE
Na verdade, o objetivo de Henry Ford era outro: livrar-se da dependência desta matéria-prima, que na época era produzida principalmente na Malásia e no Sri Lanka, e então exportada principalmente para a Holanda e para o Reino Unido, com excessiva demanda. Afinal, os Estados Unidos devoravam uma quantidade impressionante de borracha: no início dos anos 1900, cerca de 70% da produção mundial de borracha acabou nos Estados Unidos, três quartos dela destinados às Big Three de Detroit.
Então, que melhor ocasião teria o iluminado empresário americano – que pode ser considerado o Elon Musk daqueles tempos –, para dar consistência à sua visão sobre a cidade ideal, um lugar onde você poderia aplicar suas crenças sobre seu papel na sociedade e garantir um futuro próspero para as pessoas? Em suma, ele queria criar uma cidadezinha à sua imagem e semelhança. E ela foi batizada, comprovando uma autoestima imensurável, de Fordlândia.
As estruturas originais da Fordlândia (fotos em preto e branco) estão quase todas em estado de abandono. A cidade, no entanto, renasce um pouco: há 15 anos, eram menos de cem habitantes, agora são dois mil
CINCO MIL EMPREGOS
Henry Ford decide realizar seu “trabalho de civilização”, como gostava de defini-lo, na floresta amazônica brasileira. Mais especificamente, no pequeno povoado de Boa Vista, às margens do Rio Tapajós, ao sul de Aveiro, Pará. Foi lá que comprou terras com uma área de mais de 14 mil km2.
Mas, na Fordlândia, as coisas começam a dar errado imediatamente. Para início de conversa, a tentativa de padronizar o cultivo de Hevea brasiliensis, a popular seringueira, não têm êxito: as mudas, dispostas umas longes das outras em imensos latifúndios, são presas fáceis de fungos, insetos, aranhas e várias outras pragas, e não crescem. Na verdade, morrem. Nem mesmo o solo parece ser muito adequado ao cultivo, porque frequentes chuvas torrenciais varrem seus nutrientes. E o pior ainda está por vir …
FALÊNCIA TOTAL
Henry Ford, totalmente convencido de que deixar tempo livre para os trabalhadores seria essencial para um bom processo de produção, estava determinado a impor hábitos tipicamente americanos aos nativos, que os desconheciam completamente.
Como o hábito de morar em subúrbios, em suas “deliciosas” casas bifamiliares – mas sem água corrente e convenientemente distante dos dos americanos, que tinham todo o conforto, incluindo uma vista de tirar o fôlego. Ou o de comer hambúrgueres indigeríveis (para os indígenas).
Na Fordlândia, o álcool era proibido, assim como certo tipo de companhia feminina. Assim, os nativos passavam um bom tempo fora da “jurisdição” da Ford, em uma ilha batizada – com sutil ironia – de Island of Innocence (Ilha da Inocência). Por outro lado, dançar na praça, ouvir poemas, descansar e rezar aos domingos é obrigatório. Um tédio fatal, mas é o de menos.
A cidade tinha um hospital totalmente equipado: havia sala de cirurgia e até radiologia. A estrutura ficou intacta até o ano 2000, e depois foi saqueada.
Enquanto isso, nas plantações, a rotatividade é alta: os trabalhadores se recusam a ficar nos campos das 9h às 17h, como acontece na fábrica de Dearborn, e vão embora; outros chegam atraídos por altos salários, mas resistem pouco tempo. E, em dado momento, os trabalhadores se rebelam de vez. Até então, eles estavam acostumados a serem sempre servidos à mesa. Aí, quando o autoatendimento lhes foi imposto pela Ford, eles sacaram seus facões e destruíram toda a cantina.
A aventura da Fordlândia se prolongou até 1934, quando a cidade foi definitivamente abandonada, antes de as terras serem devolvidas ao Brasil, nove anos depois. Henry Ford, pioneiro da indústria e inventor da linha de montagem, um empresário visionário e esclarecido, morreu em 1947. Sem ter passado sequer um minuto em sua cidade ideal, que tinha seu nome.
HENRY FORD QUERIA RECRIAR UMA IDEIA DE AMÉRICA QUE SUA PRÓPRIA
EMPRESA HAVIA TORNADO OBSOLETA
O fotógrafo
SCOTT CHANDLER, o autor das imagens publicadas nestas páginas, nasceu em Toronto, Canadá, em janeiro de 1984. Ele fez a reportagem sobre a Fordlândia entre 2009 e 2011, depois de se formar no Ontario College of Art & Design, graças a uma bolsa de estudos obtida durante o mestrado em artes plásticas na Concordia University, em Toronto. Este projeto fotográfico foi exibido na Galerie les Territoires em Montreal em 2011 e no Centre d’Art Contemporani em Barcelona, Espanha, em 2015. O jovem e promissor fotógrafo canadense é reconhecido como um dos melhores autores emergentes no Canadá, e nos Estados Unidos. Depois de morar no Reino Unido, desapareceu no final de agosto de 2015 após uma longa doença. Seus trabalhos podem ser vistos no site www.scottchandler.ca.