01/02/2012 - 0:00
“Não hesito em chamá-lo de artista: um pouco estilista, um pouco engenheiro, sem ser nenhuma das duas coisas”
Scaglietti (foto), segundo Piero Ferrari
Ele marcou a história da Ferrari e da minha família. Deu alma ao mito de nossa marca. Seus carros – da GTO de Le Mans às barchettas de competição – são os mais procurados pelos mais prestigiados colecionadores. Mas quero lembrar aqui do Sergio Scaglietti amigo, que ajudou meu pai a construir sua marca. Era de origem humilde, filho de um pedreiro que morreu jovem, vítima de pneumonia. Com 13 anos, teve a adolescência interrompida e se viu obrigado a trabalhar na Fabbrica Modenese de Carrozzerie por cinco liras por semana. Andava duas horas para chegar e duas para voltar.
Em 1937, quando tinha cerca de 17 anos, seu irmão Gino abriu uma oficina na mesma rua da escuderia Ferrari e o levou para trabalhar com ele. Meu pai, Enzo Ferrari, começou a passar para eles alguns carros que precisavam de reparos na carroceria. Os dois ainda não se conheciam. Sergio era o jovem da oficina e Enzo era o dono, o gigante de poder absoluto, chamado por ele de “O Homem”. Em 1951, Scaglietti abriu sua própria oficina e, dois anos mais tarde, eles finalmente se encontraram pessoalmente.
Eram meados de 1953. Um cliente levou até Sergio Scaglietti uma Ferrari batida. Ele refez completamente e ainda incorporou algumas melhorias aerodinâmicas. Meu pai pediu para ver o carro e convocou uma reunião. Em um sábado à tarde, ele o convidou para “vestir” a nova 500 Mondial. Esse primeiro encontro foi mais um monólogo, porque meu pai chegou com tudo decidido: quanto pagaria, o prazo e até que a letra “S” (de Scaglietti) seria acrescentada ao nome do carro. Na segunda-feira, um caminhão parou na porta da oficina com um chassi motorizado. Ali se iniciou a aventura dos dois.
Scaglietti (acima, à direita) começou sua carreira aos 13 anos, moldando chapas em Módena. Nos anos 1950, abriu sua própria empresa (ao lado)
Enzo Ferrari, fundador da marca e grande amigo de Scaglietti, em um momento curioso que mostra sua comentada personalidade mandona também no trato com os animais
No começo, um mandava e o outro fazia. Scaglietti não media esforços para atender “O Homem”, que não era um tipo fácil de se lidar e, no trabalho, para usar um eufemismo, era exigente. Certa vez, Enzo chegou a sua oficina para reclamar de um trabalho com um modelo que ainda nem estava finalizado. Gritando, disse que a frente era um desgosto, que a traseira era pobre e que só as portas estavam corretas. “Clame pelo poder celestial, chame os demônios, mas quero esse carro pronto amanhã”, falou. Sergio trabalhou a noite até adormecer sobre o radiador. Acordou com as costas marcadas pela grelha. Hoje, que o automóvel nasce sobre uma linha de montagem, é difícil entender a importância que a carroceria tinha nos anos 50. Scaglietti não se limitava a executar um projeto. Interpretava as ordens, as ideias, entendia a importância da marca e criava. Não hesito em chamá-lo de artista: um pouco estilista, um pouco engenheiro, sem ser nenhuma das duas coisas.
Scaglietti não se limitava a executar um projeto. Interpretava tudo, entendia sua importância e criava
Pouco a pouco, a relação deles foi mudando. De colaborador, passou a amigo da família. Meu pai adorava sua companhia. Ele só gostava de casa para dormir. No resto do tempo, preferia estar na fábrica ou no restaurante. Por isso, criou o hábito de almoçar também aos sábados em uma tratoria perto da empresa, sempre acompanhado de um vinho Lambrusco e de poucos e fiéis amigos, entre eles Scaglietti. Scaglietti frequentava minha casa e me ajudou a ingressar no mundo automobilístico. Quando tirei minha habilitação, comprei um dos primeiros Mini Cooper. A carroceria era cinza-azulada horrível, mas Scaglietti o refez em uma cor metalizada maravilhosa e colocou bancos de corrida estilo Le Mans.
Piero Ferrai, filho de Enzo, testemunhou a intensa amizade entre seu pai e Scaglietti
Continuamos a ter uma relação próxima mesmo quando a Scaglietti virou uma grande empresa e, depois, ao ser incorporada ao grupo. Aliás, aqui cabe uma história que ilustra bem o caráter desse homem. Em 1970, quando a Fiat adquiriu 50% da Ferrari, meu pai precisava convencê-lo de que seria correto entregar a Scaglietti aos compradores. Quando meu pai expôs a situação financeira, ele nem deixou que continuasse: “Se você está dizendo, comendador, é porque a cifra está correta. Onde assino?” Mais um exemplo de sua fidelidade ao meu pai e à empresa, homenageada na criação da Ferrari 612 Scaglietti, de 2004. Agora, depois de sua morte, estamos pensando em como reconhecer novamente a dedicação sem limites desse artista humilde e único.
Em um raro livro de Franco Gozzi (à esq.), Scaglietti confessou que só possuiu duas Ferrari, e por poucas semanas cada uma
Scaglietti sempre trabalhou para a Ferrari até fazer parte do grupo. Na foto, Sergio com Jean Todt (à esq.), Luca di Montezemolo (à dir.) e Amedeo Felisa (no canto), executivos da Ferrari