Por Flávio Silveira

Reportagem Alessio Viola Fotos Alberto Dedé e Alejandro Gil Delgado

O Audi Q4 e-tron estava alinhado para os primeiros dias como “maratonista” de nossa parceira italiana, a revista Quattroruote, e as equipes editorial e do centro de testes questionavam quanto tempo levaríamos para completar esta prova de resistência. Já havíamos feito dezenas, ou até centenas, de testes de 100.000 quilômetros como este, mas, pela primeira vez, isso aconteceria com um modelo totalmente elétrico. E já aviso: ninguém acertou, a começar por mim. Porque, com tanto que se diz a respeito dos BEVs – e sobre a péssima infraestrutura que os atende –, parecia impossível que levássemos o mesmo tempo, nesta prova, que levamos testando um carro a combustão. Mas foi rápido, 16 meses. No passado, demoramos mais: o Toyota Yaris do último teste de resistência, por exemplo, precisou de 11 meses pra rodar 50.000 quilômetros.

A maior parte do teste foi nas curvas do Passo della Cisa, na Itália, onde o Citroën Axel, em 1986, após 93 mil quilômetros heróicos, desistiu. Anos depois, um ZX, da mesma marca, fez façanha igual: rodou 120.000 quilômetros, necessitando apenas de uma quantidade enorme de pastilhas e discos de freio. Mas o que o travou foi a bomba de óleo (as velas, por outro lado, percorreram 100.000 quilômetros, muito mais do que os 20 mil programados inicialmente). Isso nos mostra bem como o automóvel foi capaz de evoluir e amadurecer com o passar do tempo. O que era um problema sério antigamente não é sequer considerado algumas décadas depois, a ponto de darmos como certa a ausência de determinados defeitos. Já para nosso Audi, percorrer esses 100.000 quilômetros sem visitar a oficina foi considerado normal: naõ fez nenhuma parada extraordinária, nem sequer qualquer das revisões “clássicas”.

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NÚMEROS DA MARATONA

100.753 km
distância percorrida em 16 meses

23.20 kWh
total de energia elétrica consumida pelo Audi

756 reais
despesa total com a manutenção do carro (€ 141,22)

4,3 km/kWh
consumo médio nos 100.753 quilômetros

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Destaca-se o custo de manutenção, de fato insignificante. Depois de nosso teste, o Q4 e-tron ainda passou a usar um novo motor, com 286 cv (82 a mais) e que promete um menor consumo e autonomia de 562 quilômetros – no generoso ciclo WLTP; no mundo real deve ficar em 400, uma marca ainda boa

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A estrada onde a maior parte dos 100 mil quilômetros foram rodados liga Rozzano a Gênova e, depois, segue para La Spezia. Dali, saíamos em direção a Parma, por uma estrada antiga, e voltávamos para Tozzano usando a rodovia Autosole. Esse percurso de 458 quilômetros foi percorrido inúmeras vezes pelo Q4, bravamente, no calor e na neve

Foi só aos 54.545 quilômetros que gastamos, por opção nossa, € 70 (R$ 375) para um check-in em uma oficina da Audi: abastecemos o fluido do para-brisa, observamos os pneus, verificamos o capô e a parte inferior. Daí surgiu a possibilidade de abastecer o refrigerante da bateria – o que os mecânicos tentaram fazer, mas não foi preciso. De qualquer modo, mesmo esta redução (radical) do papel da oficina, nós quisemos conferir.

O mesmo progresso da engenharia ficou bem claro em nosso diário de bordo: em 1958, o livro que registrou o teste de 161.000 quilômetros com um Lancia Appia incluía uma página inteira só pra listar os serviços realizados: iam da substituição da tampa do tucho até a do coxim do motor – isso para não falar da troca das suspensões dianteiras e dos cabeçotes – esses últimos em duas ocasiões, aos 52.000 e aos 101.000 quilômetros.

Mesmo recentemente, o diário do Peugeot 307 2009 teve 40 ocorrências, e o do Renault Mégane, 30 (não é implicância com os franceses: foram 32 nos 100.000 quilômetros do Jaguar XF 2011). Agora, 13 anos depois, foram só 12 ocorrências com o nosso Audi elétrico: a tabela ao lado mostra como o Q4 fez bem seu trabalho. Pra não dizer que foi uma completa ausência de problemas ou visitas à oficina, os poucos “bugs” que surgiram foram pequenos, contemporâneos e temporários: o sistema multimídia causou mais acessos de raiva que o necessário, mas nunca chegou a precisar ser de fato reparado. Entre a redação e o centro de testes, todos que se revezavam ao volante entre longas viagens a trabalho e voltas aleatórias pela Autocamionale della Cisa, fizeram comentários positivos sobre o SUV: ele é sempre tranquilo de guiar, mesmo com o tempo ruim e em estradas péssimas. Como na viagem em que cruzamos os Balcãs, que teve quatro mil quilômetros e passou por uma dúzia de países.

Hoje, mesmo olhando com atenção, há poucos elementos no Audi que entregam seu hodômetro com seis dígitos: o aro do volante está impecável, porém um pouco menos opaco do que quando novo, e o couro do banco do motorista está meio gasto pela rotação de motoristas. No mais, a qualidade Audi que nos acostumamos a elogiar resistiu sem problemas à maratona. E não considerávamos isto como algo óbvio, levando em conta os obstáculos financeiros, entre outros, que os fabricantes enfrentam atualmente: para cumprir os compromissos com a transição energética europeia, são necessárias montanhas de dinheiro – e, em nome dela, muitas vezes corta-se custos no acabamento e na qualidade intrínseca do carro, ou até mesmo na confiabilidade da marca. Essa é uma discussão geral que, evidentemente, passa longe deste Q4, um carro que certamente não foi tratado com luvas de pelica, como mostra o consumo. Mesmo nos elétricos, este é um indicador preciso e incontestável do empenho exigido do carro. Fechamos os 100.000 quilômetros com 4,3 km/kWh de média, com picos abaixo de quatro. É alto, mas não se preocupe: no dia a dia você pode se sair melhor, mesmo sem técnicas de hypermiling. Falando em consumo, antes de terminar, outra vantagem dos elétricos: diferentemente da gasolina, não dá pra adulterar eletricidade, então não há perigo de ter problemas com isso. Qualquer que seja o país de teste, os quilowatts-hora serão idênticos. Só muda a fonte.

A análise na oficina zero problemas

Depois de uma maratona tão perfeita, tínhamos certeza de que a desmontagem do carro não traria grandes surpresas negativas. Na oficina, os palpites deram lugar às certezas. O Audi Q4 e-tron mostrou que ainda está em uma forma extraordinária e, nesta “desembalagem” bastante cuidadosa, a possibilidade de examinar todos os detalhes nos mostrou que mesmo a parte “tradicional” do carro continua em excelente estado, mesmo com o grande peso adicional da bateria. Suspensões, semieixos, homocinéticas: todos permanecem em perfeitas condições, como foi comprovado pelos testes da nossa parceira Quattroruote: aceleração e retomadas não se alteraram, as suspensões absorvem os solavancos como quando eram novas, e o consumo aumentou muito pouco. Já o ruído ficou só um pouco mais pronunciado, e os freios parecem ainda mais polidos do que quando novos, provavelmente por causa dos pneus agora diferentes. E provamos que – como esperado, devido à frenagem regenerativa –, a vida útil dos discos e das pastilhas de freio é bem mais longa.

Muita luz, nenhuma sombra

Nosso Audi Q4 e-tron parece ter usado cada um de seus 100.753 quilômetros para dar mais substância a dois objetivos. De um lado, confirmar os pontos fortes – e os fracos – encontrados de nosso primeiro teste, em 2022. De outro, pegar os medos, angústias e ansiedades da transição energética e fazer com que eles parecessem clichês. Ou preconceito. É verdade, a base estatística ainda é bem limitada (por isso, faremos outros testes iguais a este), mas o uso sem hesitação dos eletropostos de alta potência, por exemplo, não afetou o estado de saúde da bateria – reforçando o que lemos em estudos norte-americanos sobre os milhares de Teslas parcialmente maltratados com HPC e parcialmente recarregados com a doçura da energia AC 11 kW. O que se destacou nos dossiês foi a importância de sempre evitar carregar até 100% (e, sobretudo, não deixar a bateria “cheia” por muito tempo) e evitar, também, descarregá-la até zero. Mas nós não nos preocupamos com isso: conscientes dessas informações, fazíamos o que era necessário, sempre que necessário. Ou seja, carregamos totalmente várias vezes e também chegamos ao eletroposto com autonomia de um dígito – porque o carro deve ser compatível com a vida real.

Ao fazer tudo isso, vimos que a confiabilidade do SUV alemão também não é problema. O fato é que ficou longe do que a Consumer Reports publicou recentemente. Esta organização americana, em seu relatório de confiabilidade de 2023, mostra que carros 100% elétricos são mais sujeitos a problemas que modelos a combustão. E não pouco: com amostra de 330 mil carros, mostra uma taxa de defeitos superior a 79%. Com o Q4 e-tron, foi justamente o contrário: ele passou na oficina para as óbvias trocas de pneus e, no meio do teste, uma verificação voluntária. Confirmou que, mesmo entre fabricantes de BEVs, tem menos defeitos quem começou antes. A arquitetura plataforma MEB existe desde 2020, e não foi a estreia elétrica do grupo, que tem carros a bateria desde 2014, quando foi lançado o e-Golf. E os protótipos do Elektro-Golf datam de 1976…

Como ficou a bateria
Sem motivos para preocupação

De certo modo, esse é o ponto mais crucial do teste: o estado de saúde da bateria. Além de desmontá-la do ponto de vista físico (tivemos que retirar 108 parafusos, 26 nas nervuras que dividem os módulos e 82 no seu perímetro), também a analisamos quimicamente. Só assim é possível determinar seu SoH (State of Health, ou Estado de Saúde), que, basicamente, é a sua vida residual. Levando em consideração a importância do tema, fizemos uma dupla análise. Aos números colhidos durante o teste com o Power Check Control, acrescentamos um exame aprofundado. E o resultado é tranquilizador: depois de 100.000 quilômetros, não há células danificadas e o SoH é de 94,4%. Um valor de extrema importância, e resultado, também, de um aumento inesperado da energia disponível: desde junho de 2023, notamos a presença de 2 kWh adicionais, compensando parcialmente a deterioração fisiológica da bateria. Este último processo, segundo as pesquisas, após uma curva inicial, cai linearmente até cerca de 80%. Na verdade, sem os 2 kWh adicionais, o Q4 e-tron teria perdido 8% da capacidade da bateria, em linha com os 4% que perdeu nos primeiros 50 mil quilômetros. A linearidade sugere um funcionamento impecável (reduções de desempenho previsíveis e fisiológicas) até 360 mil quilômetros. Nossa análise também mostrou que as células continuam equilibradas: não há diferenças significativas de tensão entre elas. Isso, para a bateria, é um indicador de saúde melhor do que a quilometragem de fato percorrida. Na verdade, bastam poucos milivolts de diferença para acionar o bloqueio do BMS (Battery Management System). Em autonomia, passamos dos 420 quilômetros iniciais para 395, segundo nossos testes. Voltando aos 2 kWh extras, a marca não confirma nem nega, mas é difícil acreditar que a sincronia entre a atualização do software recente e o surgimento deles seja mera coincidência. E não há nada de errado nisso: com o tempo, a fabricante deve ter considerado possível reduzir o buffer que preserva a saúde da bateria (5 kWh, no caso). Com ou sem esses 2 kWh, podem ficar tranquilos: a rede oficial da Audi certifica a bateria dos EVs usados. Pedimos que nos dissessem o valor com que nosso Q4 seria oferecido: 94%. Um número que reafirmou a precisão dos nossos instrumentos e a honestidade da revenda. Se este número ficasse abaixo de 70%, a garantia do carro (de oito anos ou 160 mil km) permitiria a troca da bateria.

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Audi Q4 e-tron

Motor: traseiro, elétrico, síncrono
Combustível: eletricidade
Potência: 204 cv
Torque: 310 Nm
Câmbio: automático, caixa redutora com relação fixa
Direção: elétrica
Suspensões: MacPherson (d) e multilink (t)
Freios: discos ventilados (d) e tambores (t)
Tração: traseira
Dimensões: 4,59 m (c), 1,87 m (l), 1,61 m (a)
Entre-eixos: 2,76 m
Pneus: 235/45 R21
Porta-malas: 535 litros
Peso: 2.120 kg
0-100 km/h: 8s4
Velocidade máxima: 180 km/h
Consumo na cidade: 5,7 km/kWh
Consumo na estrada: 5,6 km/kWh
Consumo em rodovia: 3,8 km/kWh
Bateria: íons de lítio, 77 kWh utilizáveis
Autonomia: 395 km
Recarga: AC 11 kWh / DC 135 kW