Desta vez não é preciso contar história, porque a história é o próprio carro. E para criar histórias extraordinárias basta sua presença magnética, a lenda por trás dele, o labirinto de formas e funções que permeia cada linha. Carros como esse geralmente nascem em Modena, mas o Ford GT é uma clássica exceção que confirma a regra. Seu local de nascimento é Ontário, na pouco evocativa Markham, onde é fabricado pela Canadian Multimatic, empresa especializada em “coisas” do gênero. Um detalhe incidental: o que merece ficar para a posteridade são as origens e a gênese do projeto. Ele nasceu da vontade de engenheiros da divisão Ford Performance, que, em 2013, começou a passar noites e fins de semana em um porão na cidade de Dearborn, sede da marca. Um trabalho dedicado à criação de um carro que poderia vencer Le Mans em 2016, meio século depois do hat-trick do mito GT40. Um projeto tão único que os protagonistas não sabem precisar se no desenvolvimento das duas versões derivaram o carro de corrida do supercarro (como manda o regulamento) ou se fizeram exatamente o contrário.

Quando você se coloca frente a frente com o Ford GT, tudo fica mais claro. A sensação é de que os dotes de corrida foram prioridade total: a porta se abre para cima, mas não leva junto parte do teto, elemento estilístico fundador do GT40 retomado no remake de 2004. Motivo: a célula de carbono inclui uma estrutura tubular que é uma verdadeira e própria gaiola homologada para corridas. Então, uma vez a bordo, piloto e passageiro ficam encaixados em uma cabine na qual não sobra um centímetro. Para evitar desperdícios nesse sentido, o assento não tem ajuste longitudinal – coluna de direção e pedaleiras é que se movem. Até se encontra uma posição de guiar boa, mas não tanto quanto o carro merece. De qualquer modo, a cabine lembra bem mais um ambiente de trabalho para pilotos do que em qualquer Ferrari ou Lambo: quatro grande botões no túnel e tudo para lembrá-lo que o GT, mais que um supercarro para ser usado também no dia a dia, é uma máquina inesquecível para quem a dirige.

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O GT é o carro perfeito para machos-alfa, mas tem milhares de detalhes irritantes. Um carro tão espetacular e específico só alcança seu propósito se tiver coisas que você jamais aceitaria em outros carros: um porta-malas insuficiente até mesmo para um passeio de fim de semana, uma visibilidade traseira péssima, um ar-condicionado que não consegue dar conta do recado, uma central multimídia com controle de volume apenas no volante… e, de modo geral, a impressão de que é mais difícil fazê-lo andar devagar do que entregar tudo que é capaz – mas é aí talvez esteja a própria natureza dos Grand Turismo, não?
Primeira medida quando se decide falar sério: selecionar o modo Track. Isso só se faz parado, e há uma razão: o GT realiza instantaneamente um “gesto atlético” fascinante. Abaixa 5 centímetros em um amém, “agachando” sobre as rodas com a rapidez de uma troca de pneus em Le Mans (citação aleatória…). A suspensão se torna extrema, para uso apenas em pista – único lugar onde o bom senso permite explorar o GT como merece.

A maior fonte de inspiração para definir o caráter do GT foi a Ferrari 458 Speciale. Aí se adicionou um pouco de McLaren 675 LT, carro que convenceu os engenheiros da Ford a rever alguns aspectos já definidos. Na verdade, o GT lembra ambos, ao mesmo tempo têm magia própria. Comparado ao inglês, é um pouco mais fácil de confiar: jogar com limites de aderência, e, volta a volta, achar a trajetória ideal não requer habilidades quase divinatórias que diferenciam amadores de pilotos profissionais. A facilidade com a qual desliza nas curvas é resultado da rapidez nas respostas às transferências de carga: tudo acontece de forma imediata, mas sem imprevisibilidade. A direção ajuda: não é telepática como a da 488 GTB, mas faz o que precisa. Conta tudo o que acontece no eixo dianteiro com riqueza de detalhes. O GT nasceu para uma condução limpa, mas no fim a cada curva você quer provocá-lo: colocá-lo de lado em contra-esterço, em um perfeito equilíbrio de volante e acelerador, é pura poesia.

Senti falta, porém, de um motor maior. Os 656 cv são uma enormidade, soam bem e empurram o carro com a veemência necessária. Mas neste nível de esportivo não basta: o jogo é também de caráter, personalidade – o que diferencia uma simples fonte de energia de um motor de superesportivo. O V6 é possante, mas não feroz: para de girar a 7.000 rpm e, de vez em quando, você nem quer nem chegar perto disso. Poupe umas centenas de giros que nada muda. Melhor deixar tudo a cargo do (perfeito) câmbio automatizado de dupla embreagem da Getrag – que rivaliza com o da Ferrari 458 GTB na pontualidade e velocidade. Os freios também impressionam, com pedal encorpado e mordida forte. De carbocerâmica, às vezes atrasam, mas pagam com juros. Por fim, lamentamos cortar seu barato, mas todos os 1.000 exemplares (250 por ano) desse “unicórnio” da Ford já foram vendidos.


MODOS DE CONDUÇÃO

As cinco personalidades do GT, das ruas à pista

O botão à esquerda do volante permite adaptar o GT a diferentes situações. Cada posição tem uma mistura diferente para de ajustes eletrônicos, mecânicos e aerodinâmicos. E a cada um corresponde um layout diferente para a instrumentação, totalmente digital. O procedimento para o Launch Control (controle de largada), depois de ativado pelo botão no túnel, é simples: pise no freio e no acelerador até o fundo e, quando a escrita LC muda de branco para verde, tire o pé do freio. A eletrônica cuida do resto.

WET (MOLHADO)
Se diferencia da opção Normal principalmente pela resposta mais suave do acelerador, que torna a baixa aderência mais controlável. O controle de largada (launch control) não funciona.

NORMAL
Como no Wet, o aerofólio ativo se abre a partir de 145 km/h, sendo que a mais de 120 km/h também funciona como aerofreio. As suspensões podem ficar no Comfort (confortável).

TRACK (PISTA)
A carroceria se abaixa 5 cm (a distância do solo diminui de 12 para 7 cm) e as suspensões ficam ainda mais rígidas. Asa traseira sempre aberta. Selecionável somente parado. Para usar na pista.

V-MAX
Uma variante do Track: controle de estabilidade ativo, mas não configurável, e
antilag desativado. Asa traseira retraída: o carro perde carga vertical, mas se reduz
o arrasto aerodinâmico.


VAIRANORING

Leveza acima de tudo

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A pista é o lugar das diferenças, das distinções. O lugar onde as nuances levantam a voz e se tornam reais diversidades. É por isso que, entre as zebras, o caráter de um carro aparece com toda a sua força. Algo que, no caso de GT, vem principalmente da qualidade da carroceria – em sentido amplo, que vai da leveza do carbono às qualidades da suspensão, da precisão aerodinâmica ao poder dos freios. O que, de modo geral, dá uma luz especial ao mais extraordinário Ford – que, no trecho de handling, mostrou sua alquimia fenomenal: sensações de carro de corrida que se aproximam um animal das pistas, como o McLaren 675 LT, e uma comunicabilidade que se assemelha à da Ferrari 488 GTB.

No fim, o veredicto do cronômetro, sempre implacável, o deixou (sim!) à frente da Ferrari e atrás do McLaren, como você confere abaixo. Uma conquista notável, que seria melhor se tivesse um motor maior. O V6 não é elástico: empurra forte, mas falta aquela alongada infernal que separa os supercarros do resto do mundo e que, na pista, se traduz em vantagem de décimos ou centésimos de segundo. Ele para antes das 7.000 rpm e tem que agradecer muito ao câmbio, que faz de tudo para tornar seus limites menos evidentes. Por outro lado, a capacidade de gerenciar a trajetória e mudar de direção, sobretudo em alta velocidade, é extremamente estimulante, e a aerodinâmica ativa garante uma estabilidade fora do comum.


AERODINÂMICA

Truques de ar ​​e carbono

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O mundo dos supercarros de motor central é reino dos V8 (com raras exceções, como o 6 em linha da Porsche). Mas os engenheiros da Ford preferiram um V6 compacto: por um lado, claro, por causa de sinergias industriais (o motor do GT deriva do usado na picape F-150 Raptor, com quem compartilha 60% dos componentes), por outro para garantir menos peso (o carro pesa menos de 1.400 kg). O pequeno V6 permitiu ainda gerir com mais liberdade a aerodinâmica, ponto forte do GT.

A asa traseira ativa e a precisão dos detalhes resultam em uma relação favorável entre carga e resistência aerodinâmicos. A marca não revela dados precisos, mas a 240 km/h a carga deve ficar em torno de 180 kg. Até as suspensões contribuem, pois a peculiaridade do esquema permite uma liberdade estilística que foi explorada em nome da aerodinâmica. Um projeto engenhoso, que, graças a um amortecedor eletro-hidráulico DSSV (válvula de suspensão dinâmica) e dois elementos elásticos de rigidez diferentes permite passar num instante do acerto básico para o mais rígido – e rebaixado cinco centímetros.


Ficha técnica:

Ford GT

Preço na Europa: R$ 2.420.000
Carro avaliado (Europa): R$ 2.420.000
Motor: 6 cilindros em V 3.5, 24V, comando variável, injeção direta e indireta, biturbo
Cilindrada: 3497 cm³
Combustível: gasolina
Potência: 656 cv a 6.250 rpm
Torque: 75,9 kgfm a 5.900 rpm
Câmbio: automatizado, sete marchas, dupla embreagem
Direção: hidráulica
Suspensões: braços curtos e longos (d/t), altura e rigidez ajustáveis
Freios: disco de carbocerâmica (d/t)
Tração: traseira
Dimensões: 4,76 m (c), 2,00 m (l), 1,11 m (a)
Entre-eixos: 2,71 m
Pneus: 245/35 R20 (d) e 325/30 R20 (t)
Porta-malas: 11 litros
Tanque: 85 litros
Peso: 2.197 kg
0-100 km/h: 3s3*
0-200 km/h: 9s8*
Vel. máxima: 347 km/h*
Consumo cidade: 6 km/l (média, EUA)
Emissão de CO²: 3279 g/km

*teste QRT