31/01/2025 - 11:06
Os trabalhadores que viajaram da China para o Brasil para construir a nova fábrica da BYD em Camaçari, na Bahia, ganhavam cerca de 70 dólares por turno de 10 horas, mais do que o dobro do salário mínimo chinês por hora em várias regiões. Para muitos, isso tornou a candidatura uma decisão fácil, que depois se mostrou muito mais difícil de reverter.
Os trabalhadores chineses contratados pela Jinjiang, prestadora de serviços para a BYD no Brasil, tiveram que entregar seus passaportes ao novo empregador, deixar que a maior parte de seus salários fosse enviada diretamente para a China e desembolsar um caução de quase 900 dólares que só poderia ser resgatado após seis meses de trabalho, segundo um contrato de trabalho visto pela Reuters.
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O documento de três páginas, assinado por um dos 163 trabalhadores libertados de “condições análogas à escravidão” por auditores fiscais do trabalho no mês passado, inclui cláusulas que violam leis trabalhistas do Brasil e da China, segundo investigadores brasileiros e três especialistas na legislação trabalhista chinesa.
Outras cláusulas previamente não relatadas davam à empresa o poder de prorrogar unilateralmente o contrato de trabalho por seis meses e aplicar multas de 200 iuanes por xingamentos, discussões ou outras condutas, como andar sem camisa no local de trabalho ou nos alojamentos.
Muitas das cláusulas “são clássicos ‘sinais de alerta’ de trabalho forçado”, disse Aaron Halegua, advogado e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, que obteve compensação para trabalhadores chineses que processaram seus empregadores por trabalho forçado nas Ilhas Marianas do Norte, um território dos Estados Unidos.
Ele acrescentou que reter os passaportes dos trabalhadores ou exigir qualquer tipo de caução ou pagamento de segurança não seria permitido pelas leis e regulamentos chineses.
A Jinjiang, que trabalha na construção de fábricas da BYD em várias cidades da China, como Changzhou, Yangzhou e Hefei, contestou as alegações, afirmando que as conclusões dos auditores fiscais brasileiros são inconsistentes com os fatos e resultado de traduções equivocadas.
“A alegação de que os funcionários da Jinjiang foram ‘escravizados’ e ‘resgatados’ é totalmente equivocada”, disse a Jinjiang em uma declaração no mês passado.
Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da BYD Brasil, disse à Reuters que a montadora não tinha conhecimento de qualquer irregularidade até o final de novembro, quando surgiu a primeira reportagen na imprensa sobre o caso, e que entrou em contato com a Jinjiang para questionar as alegações.
Baldy e o presidente da BYD no Brasil, Tyler Li, se reuniram em 2 de dezembro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, eles informaram a Lula que a BYD estava lidando com a questão, segundo duas fontes familiarizadas com a conversa.
O gabinete de Lula não respondeu de imediato a um pedido de comentário.
Duas semanas depois, uma operação de auditores fiscais do trabalho encontrou os trabalhadores vivendo amontoados em alojamentos sem colchões. Trinta e um trabalhadores viviam apertados em uma única casa, com apenas um banheiro e comida empilhada no chão ao lado de pertences pessoais, em condições que os auditores descreveram como “degradantes”.
Baldy negou ter discutido o assunto com Lula em sua reunião e disse que a empresa não tinha conhecimento do contrato de trabalho da Jinjiang. A BYD está tomando medidas para garantir que “essa situação não se repita”, afirmou ele à Reuters.
Os auditores não forneceram qualquer evidência de que a BYD estava ciente das violações, mas a montadora é “diretamente responsável”, disse Matheus Viana, chefe interino da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), porque a companhia é responsável pelas ações de um contratante terceirizado em suas instalações.
Substituto da Ford
O contrato não divulgado anteriormente oferece novos detalhes sobre como uma fábrica, considerada um símbolo do estreitamento das relações Brasil-China, se tornou o epicentro de um escândalo para a BYD em seu maior mercado fora da China.
A BYD concordou no final de 2023 em assumir e investir pesadamente na produção de veículos elétricos em um parque industrial em Camaçari, no Estado da Bahia, onde por duas décadas funcionou uma fábrica da Ford Motor.
A Ford abandonou a unidade em 2021, demitindo cerca de 5.000 trabalhadores ao encerrar a produção no país.
Para Lula, ex-líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na região metropolitana de São Paulo, o acordo com a BYD prometia gerar empregos industriais do século 21 em um reduto petista.
A notícia do grande investimento alimentou esperanças de que a empresa chinesa traria de volta o dobro de empregos que a Ford eliminou, em um Estado onde quase 10% das pessoas estão desempregadas.
Mas quando a BYD contratou uma empreiteira chinesa para construir a fábrica, Antonio Ubirajara Santos Souza, coordenador geral do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Montagem e Manutenção Industrial de Camaçari e Região (Sindticcc), disse que foi um sinal de que a empresa “não jogou limpo”.
Em uma declaração encaminhada à Reuters, a BYD disse que a empresa está comprometida em gerar empregos locais e que, quando o complexo fabril estiver em plena operação, contará com 20 mil trabalhadores, incluindo brasileiros.
Durante a operação de dezembro, os inspetores encontraram cópias de 10 contratos com cláusulas similares às vistas pela Reuters, eles disseram. Alguns trabalhadores disseram aos auditores que não tinham contratos, e outros afirmaram que só assinaram os seus papéis depois de meses no Brasil.
A BYD e a Jinjiang serão acusadas de embaraçar a investigação porque, quando solicitadas, não forneceram aos auditores o endereço dos alojamentos dos trabalhadores, disse Daniel Santana, auditor fiscal do trabalho que investiga o caso. A acusação expõe as duas empresas a uma possível multa.
Investigação
Centenas de trabalhadores chineses ainda estão trabalhando no canteiro de obras junto a brasileiros, disseram líderes sindicais à Reuters. Os representantes sindicais afirmam que os empregados brasileiros se queixaram este mês de irregularidades no local, incluindo falta de água potável.
A BYD compartilhou com a Reuters fotos dos novos alojamentos e refeitórios que disponibilizou para os empregados. Mesmo assim, o Sindticcc decidiu processar tanto a BYD quanto a Jinjiang por violações anteriores.
Políticos locais também levantaram preocupações sobre outros projetos na Bahia previstos para serem construídos por empresas chinesas, como uma ponte em Salvador orçada em 7,6 bilhões de reais, o que alguns moradores temem que possa ser o mais recente de uma série de projetos dependentes da mão de obra estrangeira.
“Jamais a gente pode trazer um desenvolvimento para um Estado às custas de um trabalho escravo”, disse o deputado estadual Alan Sanches (União Brasil).
O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), disse à Reuters que a BYD ainda deve criar 10.000 empregos locais e que o Estado não pode “perder essa oportunidade”, mas que a montadora precisa fornecer trabalho em condições decentes.
Júlio Bonfim, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Camaçari, disse que já alertou os representantes da BYD de que a entidade não aceitará que brasileiros percam oportunidades de emprego para trabalhadores trazidos da China.
Se isso acontecer, afirmou, “a fábrica vai ter a primeira greve da BYD antes mesmo do início de produção”.