Pragmática que é, a indústria automobilística não tem partido político. Ela ama quem lhe é favorável, odeia (discretamente) quem não é. Presidentes da República, portanto, tanto podem ser Deus ou o Diabo na Terra do Sol. Juscelino Kubitschek é amado, um ícone. Foi ele quem criou as condições para a produção de carros em massa no Brasil, em 1957. Fernando Collor é odiado. Não apenas comparou os carros brasileiros a “verdadeiras carroças” como abriu o mercado para os importados, sem barreiras. Caiu e não deixou saudades. Itamar Franco é lembrado com carinho, por ter criado a categoria de “carros populares” com IPI de 0,1% e incentivado a volta do Fusca. Com ele, a venda de automóveis de passeio passou de 600 mil (1992) para 910 mil (1993). Fernando Henrique Cardoso também é admirado, pois em seus oito anos de governo a indústria vendeu 12,7 milhões de autoveículos (automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus), uma média de 1,595 milhão/ano. Em seu governo (1995), os importados sofreram uma brutal subida do IPI para incríveis 70% e os carros de entrada tiveram algumas canjas: em 1999, por exemplo, o imposto passou de 10% para 5%, pois o mercado estava em queda.

Depois disso teve Lula e Dilma. Nunca houve um presidente como Lula para a indústria automobilística. Curiosamente, o primeiro mandato de Lula teve vendas menores do que o primeiro mandato de FHC. Foram 6,9 milhões de veículos com o tucano e 6,6 milhões com o petista. Pior: enquanto FHC registrou uma média de 98,6 mil empregos/ano, Lula teve 88,8 mil/ano. Mas Lula tinha uma relação com a indústria automobilística que FHC nunca teve. Um era metalúrgico, outro era professor. Portanto, desde que liderou a famosa greve do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1978, Lula passou a entender a alma da indústria automobilística. Negociar com as montadoras, para ele, não era um trabalho; era um prazer.

Lembro de uma ocasião, acho que no começo do segundo mandato, em que o presidente Lula foi convidado para um jantar do Clube dos Exportadores de 1 Bilhão de Dólares, com dezenas de executivos da indústria automobilística marcando presença. Havia uma certa balbúrdia e muitos discursos chatos aos quais quase ninguém prestava atenção. Mas bastou Lula pegar o microfone para que o grande salão do convescote silenciasse. Todos queriam ouvir o ex-metalúrgico. E ele falou mais ou menos assim:

“É incrível como a indústria automobilística mudou. Em outros tempos eu nem seria convidado para essa festa.” [risos]

“Na minha época os carros não tinham muita tecnologia. Quando comprei meu primeiro carro, a única coisa que eu fiz questão era que tivesse bancos reclináveis. Assim eu poderia namorar a Marisa com mais conforto.” [risos]

E assim foi, por uma meia hora. Todos aplaudiram de pé. Governante e indústria viviam felizes. A partir de 2007, a economia melhorou bastante e o mercado explodiu, registrando 2,462 milhões de autoveículos licenciados. Um recorde extraordinário. Um ano depois, saltou para 2,820 milhões. Finalmente, no final do ano, quando veio a crise econômica mundial que o ex-presidente classificou de “marolinha”, ele tratou de baixar o IPI dos carros até 1000 cm3 para zero. Em 2009, em plena crise global, as vendas internas foram de 3,141 milhões. Muita gente ascendeu à classe C e pode comprar um carro financiado. O ex-presidente terminou o governo somando 18,5 milhões de veículos emplacados em seus dois mandatos.

O sucesso como presidente deu a Lula uma autoconfiança extrema. Dilma Rousseff o sucedeu e a escalada da indústria automobilística continuou até 2012, quando o IPI novamente passou de 7% para zero, apesar de oito anos seguidos batendo recordes. Dilma também herdou de Lula o PSI (Programa de Sustentação do Investimento), que permitiu a venda de caminhões por meio do BNDES-Finame, com prazos de até oito anos para pagar o veículo com os juros mais baixos do mercado (chegou a incríveis 2,5% ao ano) e com 100% do valor financiado. Tal bondade de Lula e Dilma corroeu o caixa do Tesouro Nacional em cerca de R$ 100 bilhões e se tornou insustentável ao longo dos anos, mas até 2015 ainda estava de pé.

Dilma também mostrou-se sensível ao fato de os carros importados terem “roubado” 119 mil e 249 mil clientes das montadoras em 2010 e 2011. Então baixou o IPI dos carros de entrada para zero novamente. Novo recorde: 3,802 milhões. Mas isso não era suficiente. Na mesma tacada, Dilma aumentou o IPI dos importados para 30% (o que fez as vendas desse nicho despencarem para 93 mil) e introduziu o programa InovarAuto para o quadriênio 2013-2017, na esperança de que o Brasil passasse a ter toda a indústria automobilística mundial produzindo em seu território. Depois o IPI dos carros 1.0 passou para 2% em 2013 (quando houve uma leve queda nas vendas) e para 3% em 2014 (quando perdeu 400 mil licenciamentos).

Talvez Lula tivesse mantido sua política de benefícios, talvez tivesse sacado algum coelho da cartola. Talvez não. Mas Dilma não teve aptidão para fazer os ajustes necessários. O programa InovarAuto praticamente quebrou operações como as da JAC Motors e da Kia Motors e, de fato, trouxe muitas montadoras para o Brasil, mas com uma produção pífia. A JAC desistiu de fazer uma fábrica para 100 mil carros/ano. Talvez faça uma de 20 mil. A Honda tem uma fábrica nova desde 2015, mas está inoperante (nem foi inaugurada). A Chery, coitada, acreditou no governo e fez uma fábrica para 50 mil carros, mas vendeu menos de 4 mil no ano passado. Em 2015, as vendas internas caíram para 2,568 milhões, recuando para os níveis de 2007. Mas o capitalismo não gosta de recuos, pois vive de avanços, alimenta-se de crescimento. Em 2016, a economia está na lona e a indústria automobilística só aumenta a velocidade de sua marcha-à-ré. O primeiro bimestre deste ano registrou apenas 302 mil veículos vendidos, uma queda de 31% em relação a janeiro/fevereiro do ano passado. Esse número é similar ao de 2007, que teve quase 300 mil licenciamentos no primeiro bimestre.

Lula vive um inferno político. Dilma, idem. Apesar do carisma do ex-presidente, não creio que a indústria automobilística sonhe com sua volta em 2018. Ou que vai mover um único executivo para defender a permanência de Dilma até o fim de seu mandato. A criatura acabou com o legado do criador. No dia em que Lula foi depor coercitivamente na Polícia Federal, a Anfavea divulgou que a ociosidade da indústria instalada atingiu 52%, pois hoje pode produzir 5,05 milhões de veículos/ano. A utilização das fábricas de automóveis e comerciais leves é de 50%, enquanto a de veículos pesados tem 74% de sua capacidade ociosa.