Texto Hugo Cilo, de Buenos Aires (Argentina)
Fotos Silvia Zamboni

RESUMO

• Montadora redefine o papel do Brasil nas estratégias globais
• Três anos depois de fechar fábricas, consolida o País como centro de inovação para operações globais
• O plano agora é produzir tecnologias
• Reestruturação do modelo de negócio no País cria a Ford Performance, divisão de carros de alto desempenho e competição

O argentino Martin Galdeano, presidente da Ford para a América do Sul, está de malas prontas. Com mudança encaixotada. Na próxima quarta-feira (14), sua mobília zarpa em um navio com destino a Santos, enquanto ele decola de Buenos Aires com a esposa e seus dois filhos, de 6 e 12 anos, rumo a São Paulo. E sem passagem de volta. O executivo vai deixar a capital portenha para morar em um confortável apartamento na Vila Nova Conceição, bairro nobre paulistano, com direito a varanda gourmet e vista para o Parque do Ibirapuera. “Estamos vivendo um turbilhão de sentimentos, entre a tensão de organizar tudo e a euforia de viver em um novo país, em uma nova cultura”, admitiu Galdeano, em entrevista exclusiva à DINHEIRO, em Buenos Aires. “Não tenho dúvidas de que será uma experiência incrível para todos nós, mas o frio na barriga é inevitável”, afirmou o presidente, torcedor roxo do River Plate e apaixonado por surfe nos dias de folga ­— o que ajuda a explicar a empolgação de viver mais perto da Praia do Tombo, no Guarujá, uma de suas favoritas.

A expatriação de Galdeano não representa apenas o início de um novo ciclo na carreira pessoal, mas simboliza a escala, a importância e a dimensão de uma revolução já em curso no modelo de operação da Ford do Brasil. Não seria exagero afirmar que o executivo, aos 48 anos, assume uma das maiores missões de sua vida profissional ­— se não for a maior delas.

A ordem da matriz, em Detroit, é consolidar a operação brasileira como uma empresa de tecnologia, no lugar de uma pesada fabricante centenária de automóveis, subsidiária de um colosso industrial que ainda ostenta a quarta posição entre as maiores montadoras do mundo e que detém US$ 136,3 bilhões de receita global, atrás apenas de Toyota, Volkswagen e Mercedes-Benz.

Esse processo de reinvenção da Ford, embora esteja se intensificando, já vem ocorrendo de forma consistente e discreta nos últimos anos. Em contraste à fama de “empresa que abandonou o Brasil”a montadora mantém hoje 1,5 mil profissionais em seu time de engenharia, focados em criar, desenvolver e exportar novas tecnologias para todas as unidades da companhia no mundo.
• Em 2021, eram apenas 700.
• Nos últimos 18 meses, 500 engenheiros foram recrutados para ampliar o capital intelectual da operação, tornando o Brasil um dos principais polos de produção tecnológica do grupo.
• Como resultado, esse cérebro brasileiro produz atualmente um terço de todas as inovações embarcadas nos carros da marca, negócio que gerou meio bilhão de reais em receita para a unidade no ano passado — nada mal para uma empresa que durante quase uma década, entre 2014 e 2021, só viu números vermelhos na última linha do balanço.

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Com mais de 1,5 mil profissionais no time local de engenharia, o Brasil tem fornecido um terço de todas as inovações do grupo no mundo
(Divulgação)

Pelos erros e traumas do passado recente, montar carros no País está fora dos planos.

• Três anos atrás, em 2021, cansada de apanhar nas divulgações globais de resultados, a Ford tomou a drástica decisão de fechar suas linhas de produção no Brasil.

• As plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP), Horizonte (CE) ­— onde se fabricava o jipe Troller T4 — e de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, apagaram as luzes e fecharam as portas. Mais de 5 mil funcionários diretos foram demitidos.

• Outras cerca de 120 mil pessoas foram afetadas indiretamente em empresas fornecedoras, inclusive em países vizinhos. “Foi uma decisão difícil, mas necessária”, afirmou Galdeano. “Sem a reestruturação, a operação talvez não tivesse saída”, afirmou.

Mesmo com fábricas fechadas, a Ford do Brasil, que havia começado em 1919, nunca teve a intenção de sair do mercado brasileiro, segundo Galdeano. Embora as demissões em massafechamento de plantas e cortes radicais de custos tenham gerado cicatrizes, os números da empresa sinalizam que a manobra (chamada internamente de reestruturação) foi bem executada.

Ao deixar os segmentos de entrada, conhecidos no Brasil pelos modelos populares KaFiesta e, em categoria um pouco mais acima (bem pouco!), o EcoSport e o Focusa Ford deixou de lado um mercado de baixa rentabilidade e altíssima concorrência, especialmente com montadoras chinesas, para se dedicar aos segmentos de SUV, picapes premium e marcas de superesportivos.

Com a decisão, a montadora também abandou os modelos que faziam mais a alegria de mecânicos do que de proprietários. Pergunte para quem tem o problemático câmbio automático PowerShift. Agora, com o logotipo do cavalo da Mustang e dos chifres do Maverick (quem nunca se arrepiou com o ronco de um “Mavecão V8” na juventude que atire a primeira pedra!), a Ford parece ter realizado o sonho de se reencontrar com lucro.

Todos esses modelos, mesmo aqueles que ainda não estão no País, têm sido equipados com a inteligência brasileira. Entre as recentes inovações criadas pelo time verde-amarelo da Ford estão:
• One Pedal Drive (embarcado no Mach-E, modelo 100% elétrico da empresa), que permite dirigir usando apenas o acelerador, sem acionar o pedal do freio;
• Zone Lighting, outra criação 100% brasileira, que permite que o usuário ative e desative as luzes externas do veículo pela central multimídia.;
• o chamado Contour Seats (para os modelos Lincoln AviatorCorsair e Navigator), que são bancos altamente sofisticados. Além de uma grande variedade de ajustes, também oferecem opções de massagens, algo importante para viagens longas ou para motoristas que passam muito tempo dirigindo.

Embora não divulgue suas cifras exatas por região, o desempenho percentual da Ford salta aos olhos.

● No ano passado, as vendas da marca dispararam 38% no Brasil, enquanto a média da indústria automobilística avançou 11,2%, segundo dados da Associação dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).

● Neste ano, de janeiro a julho, a montadora cresceu 67%, enquanto o mercado subiu 13,2%. E o ritmo segue turbinado.

● Em julho, a Ford registrou o melhor mês de vendas dos últimos três anos, com 4.279 emplacamentos.

● A marca comemorou também o bom desempenho acumulado no ano, com o total de 23.968 unidades, um crescimento de 68% comparado ao mesmo período do ano passado.

A boa performance da Ford na região será fundamental para sustentar os resultados da companhia no mundo. No final de julho, após a divulgação dos resultados globais do segundo trimestre, as ações da empresa desabaram. Os papéis da companhia registravam queda de 13,8%, em resposta aos dados aquém do esperado pelos investidores. Mesmo assim, as ações acumulavam na Bolsa de Nova York alta de 16,5%, com o valor de mercado somando US$ 57,1 bilhões.

O susto nos investidores foi causado pelo lucro de US$ 1,8 bilhão no segundo trimestre, uma queda de 5,2% em relação ao mesmo período de 2023. Os resultados foram duramente prejudicados por um aumento inesperado dos custos para consertar carros defeituosos dentro do período de garantia, um problema que vem pesando sobre a Ford durante anos. A companhia informou que o problema afeta principalmente modelos antigos, de 2021 para trás.

Entre os mais recentes lançamentos da montadora estão os F-150 e Ranger Raptor, os mais potentes e rápidos da categoria (Crédito:Divulgação )

Enquanto lida com os problemas do passado, a Ford também precisa se posicionar para o futuro, apoiado nos carros elétricos. Mas a situação do mercado, com a demanda por esses tipos de veículos em baixa e custos em alta, não está ajudando a companhia nesta frente.

O prejuízo operacional da divisão de carros elétricos permaneceu estável no segundo trimestre, na comparação com o mesmo período de 2023, em US$ 1,1 bilhão, mas a receita recuou 37%, para US$ 1,1 bilhão.

PERFORMANCE

Depois de renovar o portfólio e executar a reestruturação do modelo de negócio no País, a Ford aposta no que batizou de Ford Performance. A novidade, com apresentação marcada para sexta-feira (9), no Autódromo de Interlagos, consiste em uma divisão de carros de alto desempenho e competição da Ford.

lançamento inclui também a Argentina, Chile, Colômbia e Peru na América do Sul, com um plano de negócios focado em inovação tecnológica e emoção. Trata-se de uma plataforma de experiências para promover o crescimento da marca e o engajamento emocional com os fãs, a expansão dos negócios e a transferência de tecnologias das pistas para os carros de rua. O foco, segundo a empresa, será tornar as corridas um negócio lucrativo dentro e fora das pistas através da venda de veículos, licenciamento e merchandising.

Outro aspecto importante do trabalho da Ford Performance é a transferência de tecnologia. Correr nos ambientes mais difíceis do mundo permite desenvolver e testar tecnologias que podem chegar rapidamente aos veículos e melhorar a vida dos clientes.

Existem vários exemplos de aprimoramentos que foram trazidos ao mercado dessa forma, incluindo itens de segurança, eficiência e aerodinâmica.
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O novo freio de drift do Mustang GT Performance é um dos recursos exclusivos do esportivo que foram criados originalmente para as pistas.
• Da mesma forma, a tecnologia da suspensão da Ranger Raptor é inspirada nos veículos baja de competição no deserto.

A Ranger Raptor, aliás, é o primeiro veículo desenvolvido pela Ford Performance disponível no Brasil. Em outros mercados da região, a Ford também oferece a F-150 Raptor (Argentina, Chile, Colômbia e Peru) e o Explorer ST (Chile, Colômbia e Peru).

A Ranger Raptor é a picape mais rápida da marca, equipada com motor 3.0 V6 biturbo GTDI de 397 cv, que acelera de 0 a 100 km/h em 5,8 segundos, e suspensão com amortecedores Fox.

A Ford também está usando o nome Raptor para o próximo desafio do Rally Dakar na Península Árabe, com a nova Ford Raptor T1+.

Já o Mustang GT Performance e o Mustang Mach-E GT Performance são outros veículos aspiracionais que representam desempenho, tecnologia e estilo nas respectivas categorias.

“Quando a gente oferece mais do que carros, tudo muda. Nossa proposta é dar ao cliente o que chamamos de power of choice [poder de escolha] acompanhado de tecnologia, experiência e lifestyle”, disse o presidente da empresa. É nessa nova pista da Ford que Galdeano quer acelerar.

A DINHEIRO viajou para a Argentina a convite da Ford

ENTREVISTA
Martin Galdeano, presidente da Ford América do Sul

“A decisão de fechar as fábricas no Brasil tem a ver com eficiência”

O que significa a sua mudança para o Brasil, em um contexto de mudança na própria Ford?
Significa que vamos nos focar em projetos de escala global e naquilo que temos expertise. Assim teremos eficiência para chegar do melhor jeito aos nossos clientes. Por isso é que estamos 100% focados em picapes, SUVs e veículos comerciais, mirando em tecnologia dentro dos carros, eletrificação e conectividade. Temos obsessão por a qualidade. Obsessão pelo serviço que oferecemos para os clientes. Esse é o modelo que estamos indo.

Então a Ford não deve mais produzir carros populares?
Não. Nossa expertise está em outros segmentos. Não temos expertise global em compactos. Por isso saímos dessa categoria. Quando temos de decidir onde alocar capital, temos que olhar para aquilo que fazemos de melhor. Estive dias atrás no Chile e vi que lá existem 82 marcas, 60% delas asiáticas, disputando os mesmos consumidores. Então, não precisamos entrar nisso. Até 2028, a Ford vai investir US$ 50 bilhões mundialmente para fazer essa transição.

(Silvia Zamboni)

Como a Ford vai convencer o consumidor brasileiro de que não fechou no Brasil?
Às vezes, não me conformo quando escuto essa história de que deixamos o Brasil. A Ford não foi embora. Deixamos de fabricar porque a operação era deficitária e porque saímos dos segmentos de compactos. Estávamos perdendo dinheiro. Mas se a gente tivesse ido embora não teríamos 1.500 engenheiros desenvolvendo tecnologia para todos os nossos mercados. Esse é o melhor jeito de explicar que a Ford não saiu do Brasil. Hoje, o papel que a engenharia brasileira tem no mundo da Ford é gigantesco.

O que muda para a Ford a sua vinda para o Brasil?
Primeiro, é uma decisão de estilo. Gosto é de estar perto do cliente, do concessionário. Tenho a oportunidade de conhecer o revendedor. Tivemos no Brasil um crescimento impressionante desde o ano passado. E temos muita oportunidade para continuar crescendo. Para mim é importante estar com o foco no mercado brasileiro agora.

Existe a possibilidade de a Ford voltar a produzir no Brasil?
Não está nos planos. Sempre olhamos todas as oportunidades que temos, em todos os mercados. Mas produzir, por enquanto, não está no foco.

Questões tributária e sindicais pesam nessa decisão de não reabrir fábricas?
Não tem a ver com nada disso. O custo de produzir no Brasil é semelhante a se produzir na Argentina, na África do Sul ou em qualquer outro mercado nosso. A decisão de fechar as fábricas no Brasil tem a ver com eficiência. Se não alcança eficiência com produtos que não temos expertise, como é o caso dos carros compactos.

A Ford parece tímida no segmento de elétricos, onde os chineses estão dominando. Existe alguma razão
para isso?
Globalmente, vamos nos empenhar em dar ao cliente o poder de escolha. Quem tem o poder de escolher é o cliente. Só ele sabe qual a melhor tecnologia que se adapta ao seu uso, seja elétrico, híbrido ou combustão. Mas temos consciência de que o Brasil é fundamental para o sucesso do carro elétrico. O País tem uma matriz energética limpa. Não vejo outro país que tenha esse tipo de matriz como o Brasil. É uma grande vantagem no processo de descarbonização.