30/11/2015 - 8:37
Não é todo dia que se pode pegar carona com Ayrton Senna. Mas, numa deferência especial aos leitores de Grid, o tricampeão abriu o bloqueio: vamos andar ao lado dele, em seu carro particular, num passeio pelas ruas de São Paulo. No trajeto, o novo piloto da campeoníssima Williams-Renault, favorito ao título de 1994, fala sobre o momento especial de sua carreira e sobre a Fórmula 1 em geral. Evita entrar em detalhes sobre os assuntos mais polêmicos, mas deixa escapar o seu sentimento, algumas mágoas e, principalmente, uma postura de autovalorização muito forte – seja falando de sua entrada na Williams ou dos acordos com os patrocinadores. “Estou numa boa, estou muito bem”, ele diz a certa altura. Vez ou outra, despe-se da condição de super-homem e lamenta não ter visto na TV Globo a reportagem em que Reginaldo Leme mostrou a Frank Williams seu primeiro teste na F1, com um Williams, em 1983: “Putz! Cheguei em casa e, quando liguei a TV, estava terminando a reportagem”. Vamos em frente então…
Ayrton afivela o cinto, liga o motor e arranca, vagarosamente, acenando para os fãs na calçada. E começa a falar…
– Sou muito cobrado a respeito da situação social no Brasil. Nosso país tinha uma imagem alegre. Agora, com tanta violência, mudaram a imagem do Brasil. As pessoas me perguntam se faço alguma coisa pelas crianças. Não digo nada. Se faço, ninguém precisa saber. E se faço e fico contando o que faço, então acho que perde o valor. Muitos olham para mim e pensam: “Pô, esse cara ganha um monte de dólares num país com crianças na miséria!” Sou cobrado, sim. Mas não fico falando se faço alguma coisa e o que faço.
Esse sentimento talvez explique a insistência com que Ayrton pediu uma bandeira após vencer o GP do Japão.
– Carregar a bandeira, para mim, tem um valor simbólico forte. Olha que já estou acostumado com essa história de ouvir o hino nacional em cima do pódio, mas na hora isso sempre mexe comigo.
Vamos falar das vitórias, então. Não das quatro dezenas conquistadas em 10 anos de carreira, mas das que virão quando o tricampeão sentar no Williams-Renault número 2 para voltar a ser o número 1. Existe um clima de “já ganhou” no Brasil.
– Não me preocupo com isso. Desde que eu tenha um carro competitivo, as coisas surgem naturalmente. Já mostrei que sei vencer corridas – ele diz, acelerando mais forte para colocar o carro numa brecha aberta no trânsito engarrafado.
Já imaginou Senna disparado na frente? Huummm… esse campeonato pode ficar muito chato.
– Isso não é problema meu. Se realmente acontecer, os outros é que têm de se preocupar em achar uma maneira de me alcançar.
Mas quem, afinal, pode alcançar o melhor piloto do mundo no melhor carro do mundo? Damon Hill, seu futuro companheiro de equipe?
– Damon aprendeu muito este ano, a ponto de vencer alguns grandes prêmios, conquistar poles. Há um ano, ele nem sabia direito o que era competir num carro de Fórmula 1. Tinha feito dois grandes prêmios pela Brabham, que estava no lado oposto do grid. Quanto ao relacionamento com ele, pelo contrato sou o primeiro piloto da equipe. Lógico que na prática isso não vai existir, porque a Williams tem condições técnicas e financeiras para fornecer material de ponta para dois pilotos. Ele vai ter o mesmo tratamento que eu, o que é uma vantagem para quem já está lá há um ano, conhece a equipe, conhece o carro…
A paisagem é meio repetitiva a cada esquina, o trânsito lento não deixa Ayrton dirigir como gosta, é muito acelera-freia-acelera-troca de marcha. Mas que imagem estaria passando pela sua cabeça? Vitórias? Mais um, dois títulos?
– Não falo em vitórias porque o campeonato ainda nem começou – ele diz. – Já perdi muita corrida ganha na minha vida. Em 1989, no Canadá, eu estava poupando o carro nas voltas finais e, mesmo assim, o motor quebrou. Quem ganhou foi o Thierry Boutsen, que deu uma rodada de 360 graus na reta, num lugar em que o normal seria acabar no muro. Mas não, o carro ficou na trajetória certa e ele venceu. Por isso, aprendi uma coisa: para ganhar uma corrida, antes é preciso terminá-la.
E, para ir um pouco mais longe, para ser campeão é preciso saber atuar (e vencer) também nos bastidores.
– A parte política é mais difícil do que dirigir – concorda. – Só consegui meu lugar na Williams porque usei toda minha experiência. Aprendi não só a lidar com um carro de corrida, mas com os bastidores, o funcionamento político, o relacionamento com os organizadores de um grande prêmio, com os comissários de pista, com a imprensa, como ligar com a imagem das companhias que fazem parte da Fórmula 1. Ao longo de todos esses anos aprendi cometendo muitos erros.
Ayrton erra o caminho e comenta: “Aqui não vai dar certo, não é por aqui”. Acelera mais forte para achar o rumo correto, como se estivesse recuperando o terreno perdido. Algumas esquinas depois, rumo tomado, desabafa: “Nada como a experiência!” O piloto parece estar intimamente satisfeito por ter alcançado o que queria. Mas, afinal, quem passou a perna em quem no affair Prost/Williams/Senna?
– Não tem quem passou a perna ou quem levou o tombo.
Longo silêncio. O piloto acelera, o homem pensa. Ao seu lado, muitos motoristas comuns, se virassem o rosto, veriam o ídolo de perto. Não o fazem. Todos parecem ter o mesmo objetivo: ir em frente, a qualquer custo. Ayrton sai do silêncio:
– Não tem nada disso. Minha ida para a Williams era só uma questão de tempo.
– Prost disse que, se quisesse, barraria sua entrada na equipe – provoco.
– Por que ele não fez isso, então?
– Conta como foi que aconteceu.
– Não! (nervoso) Não vou entrar em detalhes. Acho que é bobagem, não vem ao caso. A verdade é uma só: eu sou piloto da Williams e… (longa pausa)
E?
– … E ponto final. Essa é a verdade. Eu vou correr na Williams e ele não vai estar lá. Se ele disse que poderia me barrar, eu me surpreendo, pois não foi ele quem declarou tantas vezes que não tinha o direito de barrar ninguém, que isso era uma decisão da equipe? Então o Prost, apenas para variar, como sempre, fala muito. Ele ganharia muito mais se falasse menos. É isso que acontece com ele: fala demais!
Embora irritado, Ayrton não se altera ao volante. Vai dirigindo de forma tranqüila, diferente de tantos “Sennas” que andam por aí. E, por falar em inimigos, de onde vêm os problemas de relacionamento entre Senna e Michael Schumacher?
– Acho que o Schumacher, como tantos outros jovens, tem sede de vencer, mas talvez não tenha uma estrutura suficiente para administrar o sucesso tão cedo. Ele é competitivo e está tendo sucesso. Só que essa falta de estrutura acaba trazendo uma série de situações indesejáveis… no relacionamento com as pessoas, pô! Não é só comigo. Isso tem sido uma constante para ele. Schumacher não é visto da forma mais simpática dentro da Fórmula 1. Ele é visto como muito estrela. O cara venceu dois grandes prêmios na vida até hoje, nada mais, e se acha um campeão do mundo, alguma coisa assim…
Aliás, é bom que se diga, o tricampeão não perdoa, bate. Já deu uns empurrões em Schumacher. Em Suzuka, também não deixou barato o atrevimento do estreante Eddie Irvine, que também ganhou um sopapo do brasileiro. Ayrton não gostou da forma como ele pilotou e desaprovou também o comportamento de seu futuro “companheiro” Damon Hill. Senna dá o tom: faz o que quer, na pista e fora dela.
– Estou começando a colher os frutos de muitos anos de trabalho. Tenho certeza de que tem muito por vir. Se eu conseguir manter uma cabeça aberta, para continuar aprendendo, absorvendo, evoluindo, as coisas vaio acontecer.
O carro avança, agora mais velozmente. Os automóveis à frente parecem abrir espaço. Senna acelera, passa raspando num carro, corta outro, tudo com a maior segurança. E continua falando da vida, vai mostrando sua cara:
– Estou muito bem, numa boa. Estou fazendo o que gosto, corro, tenho uma posição de destaque, credibilidade não só em guiar um carro de corrida, por ter demonstrado tecnicamente ser competente, mas também por honrar, no lado profissional, os compromissos que assumo. Isso tudo é uma grande conquista na vida de um profissional.
Ele agora fala solto, sem freios. Vamos ouvindo.
– Quando você faz um contrato de um ano, oferece o serviço e a outra parte assume a responsabilidade dela. Aí, ao longo do ano, vai depender da capacidade de ambos de conviver e cumprir o compromisso, não só no papel mas no espírito da coisa. O espírito do acordo é que vale realmente. E só quem tem condições realmente de cumprir, por desejo pessoal, competência, seriedade e profissionalismo, é que tem duração, que tem vida longa, senão dura um ano, dois anos e acaba. Este ano, por exemplo, assinei o contrato com o Banco Nacional em março, depois de já ter corrido na África do Sul. A gente sabe que pode contar um com o outro na hora boa e na hora difícil. Isso é credibilidade, é uma coisa que muito pouca gente tem na minha profissão. Aliás, acho que ninguém tem, se você quer que eu seja honesto. Não estou me gabando, não, mas honestamente acho que não tem nenhum corredor de Fórmula 1 hoje, ou nos últimos cinco anos, que tenha uma credibilidade como essa.
Se ouvisse isso, Prost diria que, além de acreditar em Deus, Senna pensa que é Deus. Eles que se entendam, ou se desentendam… Na verdade, o brasileiro mal disfarça um sabor de vingança, pois há um ano, quando pensou que poderia escolher a equipe que bem entendesse, deu com a cara na porta fechada da Williams.
– Eu podia correr em qualquer equipe menos na Williams. Não podia correr porque o Prost tinha um veto específico contra mim. Só por isso: ele se recusava a competir comigo na mesma equipe.
– Você não faria o mesmo se estivesse no lugar dele?
– Isso é covardia! Você pode fazer certas exigências dentro de uma equipe para ter uma posição forte. Existem equipes pequenas que não podem ter dois pilotos número 1. Mas numa Ferrari, numa McLaren, numa Williams e numa Benetton, isso não se aplica, porque elas têm possibilidade técnicas e econômicas para ter dois pilotos de ponta. Se eu não corresse este ano, a Williams teria ganho todos os grandes prêmios, com exceção de Portugal. O que ocorreu no ano passado foi uma vergonha. Mas cada um compete do jeito que quer. Tem uns que são felizes por competir assim, estabelecer as cartas antes de dar o baralho. Eu jamais competiria dessa forma.
Ok, mas dizem as más línguas que Ayrton teria barrado Derek Warwick quando corria na Lotus. Ele jura que não. E, como é o número 1 da Williams por contrato, o pobre Damon Hill estaria destinado a perder todas as corridas…
– Não, não! Eu poderia ter uma cláusula no contrato dizendo assim: “Se Damon estiver em primeiro e eu em segundo, tem que tirar o pé e deixar eu passar porque sou o número 1”. Mas não tenho isso no contrato. Isso é absurdo, não é competição. Se o cara está na sua frente andando melhor, o problema é seu de dar um jeito de andar melhor que ele e ganhar a corrida. Agora… já aconteceu de um piloto número 2 chegar no número 1 e a equipe dizer: “Não passa”. Isso existe, sim.
Na McLaren, mesmo durante a guerrilha com Prost, Senna sempre teve um tratamento VIP. Por isso, após vencer o GP do Japão, já de contrato assinado com a Williams, Ayrton deu um abraço fraternal em Ron Dennis. Mas, é inegável, sobraram muitas mágoas nesse episódio. Ficou um diz-que-diz no ar… Enquanto o carro roda macio pelas ruas de São Paulo, segue um diálogo sobre Ron Dennis.
– Telefonei para o Ron antes de anunciar meu contrato com a Williams porque queria que ele ficasse sabendo por mim, e não pela imprensa. Aí ele me disse que tinha acabado de fechar um acordo de colaboração muito importante com a Peugeot, maior que aquele que a McLaren tinha com a Honda.
– Ele teria dito, nesse telefonema, que agora você iria se arrepender por ter deixado a McLaren.
– Para mim ele não disse isso e duvido que tenha dito para alguém. Quando ele me disse que tinha fechado com a Peugeot, eu o parabenizei e desejei boa sorte. Acho importante que a McLaren continue sendo uma equipe forte e torço para o bem deles.
– Nenhuma mágoa de Ron?
– Não tenho mágoa de ninguém. Além do convívio profissional, criamos também uma grande amizade. Sabia que sou padrinho de uma filha dele? Acho que agora, sem compromisso profissional, poderemos ficar ainda mais amigos – diz.
Ora, ora… Todo mundo sabe que o relacionamento entre Ayrton Senna e Ron Dennis chegou a ficar realmente abalado… Ayrton se abstrai, aproveita o sinal vermelho para refletir um pouco e finalmente rompe o silêncio:
– Ron sabia que eu ia sair, que era apenas uma questão de tempo para que isso se confirmasse. Naturalmente, depois de seis anos de trabalho juntos, não é uma separação fácil. Foi trabalho e amizade que cresceram nesses anos todos. Nós também tivemos grandes conquistas. Você não apaga e muda como numa compra e venda de automóvel. Existiu e existe um certo desconforto com essa mudança, não só da parte dele mas também da minha. Eu tinha relacionamento não só com ele, mas com dezenas de membros da equipe, os quais eu considero profissionalmente e pessoalmente. A mudança de um piloto depois de seis anos não é uma coisa simples. Foi tudo feito da forma mais adequada possível, com as dificuldades normais de um relacionamento.
Mas onde, diabos, Ron Dennis errou para perder um piloto como Senna?
– Ah… não vou entrar em detalhes, não vem ao caso. Não fiquei na McLaren porque não era uma proposta interessante tecnicamente para mim.
– Mesmo depois do acordo com a Peugeot? – insisto.
– A curto prazo, não. Eles vão perder para a Renault no início… e é assim que se consegue alguma coisa na Fórmula 1. A Renault também não começou a ganhar da noite para o dia. O que está acontecendo agora é resultado de um trabalho que começou há dez anos. A Peugeot tinha que fazer alguma coisa porque eles analisaram as vendas de carros da Renault e viram que a marca está crescendo com as vitórias a Fórmula 1. Eles não podiam ficar de fora.
Nosso passeio está terminando, Ayrton tem hora marcada com o oculista. Algum problema na vista? “Não, é check. Faço um controle”, ele diz. Visão perfeita, olho no futuro. Como será? Depois de ganhar cinco títulos na F1, ele iria fazer companhia para Emerson na Indy?
– Primeiro tenho que ganhar os cinco títulos. Se isso acontecer, na hora vou pensar no que fazer. O importante para mim é estar sempre numa condição competitiva.
E uma dobradinha com Nigel Mansell na Fórmula 1, como seria?
– Não daria certo. Veja: o Mansell está com 40 anos e a Fórmula 1 está se renovando rapidamente. Não é fácil, aos 40, manter o mesmo ritmo de um piloto de 23. Por isso o Mansell chegou na Indy e ganhou tudo. Lá a média de idade é muito alta.
Enquanto Ayrton fala, os carros à sua volta proporcionam as cenas habituais do trânsito brasileiro. Certos motoristas ignoram o sinal vermelho, outros freiam em cima da faixa dos pedestres, alguns fazem as ultrapassagens mais malucas. Tal como Eddie Irvine em Suzuka… O que vale mais ao volante? O arrojo ou a experiência?
– Na Fórmula 1, é mais difícil correr contra a experiência – comenta Senna, meio resignado por não ter mais um Prost ou um Mansell para enfrentá-lo nas pistas. – O piloto experiente não arrisca tanto em determinadas situações, mas em compensação, deixa a porta aberta para você ultrapassar, faz as voltas no mesmo ritmo…
Mas, afinal, o que será de Senna? Vai dar uma de Prost e parar de correr após ganhar quatro ou cinco campeonatos?
– Não tenho limite. Estou com 33 anos e acho que tenho muito pela frente ainda. Aliás, quando eu ficar velho, acho que vou relaxar na Indy. (risos)
Fim do passeio. Obrigado pela carona. E, agora sim, pode acelerar à vontade.
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