O noticiário trouxe nas últimas semanas uma onda de notícias de fabricantes de carros que estão voltando a investir no desenvolvimento de motores a combustão e tirando o pé do acelerador nos projetos de eletrificação de suas frotas. Tudo isso em meio às discussões globais sobre a transição energética e as legislações para reduzir a emissão de gases efeito estufa.

Grandes montadoras como Ford, General Motors, Volvo, Renault e Volkswagen, que inicialmente apostaram pesado na produção de veículos elétricos, estão agora reavaliando suas estratégias e voltando ao bom e velho motor a gasolina ou etanol. A IstoÉ Dinheiro ouviu especialistas no setor para saber se o movimento é uma mudança de rota ou apenas uma desaceleração diante dos obstáculos encontrados pelos veículos elétricos, além das implicações para o mercado global e também o brasileiro.

Entre os anúncios recentes, de mudança da estratégia, a Volvo Cars anunciou o abandono da meta de vender somente veículos elétricos (EVs) até 2030, responsabilizando a queda na demanda por esse tipo de produto, diante das preocupações dos motoristas com a falta de infraestrutura para recarga. O CEO da empresa, no entanto, afirmou ao Financial Times que a companhia estará pronta para cumprir a promessa ao longo da próxima década, e que, por ser uma transição complexa, pode demorar alguns anos para ser concluída. A nova meta da Volvo Car, que pertence ao grupo chinês Geely, é ter de 90% a 100% de veículos eletrificados em 2030, incluindo os motores híbridos.

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“Se o Brasil souber aproveitar seu potencial, terá grandes diferenciais. Mas, por enquanto, está 15 anos atrasado na indústria de veículos elétricos.”
Paulo Paiva, VP de negócios da Becomex

As vendas dos EVs apresentaram uma desaceleração em todo mundo em 2024, na comparação com 2023, o que não implica uma redução, mas demonstra que a mudança não ocorrerá na velocidade inicialmente planejada. Entre os principais fatores para esse movimento estão o fim dos incentivos fiscais por parte de alguns países europeus, como a Alemanha, e a imposição de barreiras de 100% para produtos importados da China no Canadá e Estados Unidos, que fez o veículo a bateria custar entre 20% e 30% a mais do que os motores convencionais a explosão de combustíveis.

A americana Ford está reorganizando sua estratégia de vendas ao reduzir o foco exclusivo nos EVs e aumentar o investimento nos motores híbridos e a combustão. A empresa de Detroit criou uma divisão chamada “Ford Blue” dedicada a esses modelos, enquanto a divisão “Model e” se concentra nos elétricos. A companhia também adiou o lançamento de alguns veículos elétricos e continua investindo em suas linhas de caminhões e SUVs movidos a gasolina e diesel, que ainda são altamente lucrativos e populares nos Estados Unidos.

Na França, a Renault também retomou a produção de motores convencionais em uma planta que estava para ser descontinuada. Segundo a companhia, o know-how de mais de um século produzindo o modelo garante ainda as maiores margens e uma sobrevida ao produto.

A GM também anunciou recentemente um investimento para continuar produzindo carros a combustão, incluindo uma nova geração de motores V8 para caminhões e SUVs, fundamentais para manter a competitividade no bilionário mercado americano. Outras montadoras, como a Stellantis (dona de marcas como Jeep, Fiat, Peugeot, Chrysler e Dodge) estão adotando abordagens semelhantes e equilibrando a produção de elétricos com a manutenção dos modelos convencionais.

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“As montadoras estão dando uma sobrevida ao motor a combustão para ganhar uma folga de caixa, mas o processo de eletrificação é irreversível.”
David Wong sócio da Alvarez & Marsal

Os movimentos dessas grandes montadoras apontam que o caminho de mudança para os propulsores com ‘zero’ emissão pode ser mais longo do que o previsto, e que os modelos tradicionais ainda terão bastante espaço na preferência dos consumidores pelos próximos anos.

Pé no freio

Para o sócio da consultoria Alvarez & Marsal, David Wong, são vários os motivos que levaram às montadoras a desacelerarem da produção de carros elétricos, citando o fim dos incentivos na Europa, a falta da infraestrutura adequada para atender motoristas e o ainda elevado custo de produção, especialmente das baterias. No entanto, Wong cita que, além desses percalços, as montadoras querem dar uma sobrevida aos motores a explosão por uma questão financeira.

“Houve uma enorme queima de caixa para pesquisa e desenvolvimento dos EVs, então elas estão realocando um percentual para aperfeiçoar os carros a combustão, que garantem margens maiores e uma folga no caixa, fazendo essa transição de forma mais lenta”, completou Wong.

Em relação às legislações, o sócio da Alvarez & Marsal ressaltou que as políticas de metas seguem inalteradas. Nos Estados Unidos, a meta segue sendo 50% de veículos zero emissão em 2030 e 100% em 2035, na Califórnia, são 100% já em 2030, enquanto na Europa a meta é 100% de veículos que não emitem gases de efeito estufa até 2035, assim como na China, Austrália e outros lugares. Com exceção do Japão. Wong ressaltou que podem haver motores a combustão de emissão zero, no caso dos movidos a hidrogênio, mas que ainda estão em estudos.

Outro especialista do setor automobilístico, o coordenador acadêmico da Fundação Getulio Vargas (FGV), Antonio Jorge Martins, afirmou que aquele entusiasmo inicial com os EVs perdeu um pouco de força diante da imposição da realidade como a falta de estrutura e o alto preço na fabricação de baterias, que fez despencar o preço dos veículos elétricos seminovos, impactando também na venda dos novos.

“O consumidor sabe que a vida útil da bateria é de 8 a 10 anos e sabe também que ela custa cerca de 40% do valor total do carro. Como ele vai comprar um carro de 3 ou 4 anos e logo ter que gastar na troca da bateria? Ou então, quem vai comprar o carro dele prestes a dar o prazo de troca? Por quanto ele vai conseguir revender?”, afirmou.

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“O Brasil deve permanecer eclético com as energias de propulsão, explorando os recursos de sua matriz limpa e a disponibilidade dos biocombustíveis.”
Milad Neto, consultor independente do mercado automotivo

O consultor independente do mercado automotivo, Milad Neto, afirmou acreditar em um crescimento dos motores híbridos nesse caminho de transição, especialmente enquanto algumas questões macro ainda não estiverem completamente resolvidas. “A matriz energética da Europa não é limpa como a do Brasil, além disso, enquanto a produção dos EVs não tiver a mesma escala, os preços seguirão mais elevados, e isso leva algum tempo até o ajuste”, completou.

No Brasil

“A indústria nacional ainda não está preparada para produzir híbridos e elétricos. Além de não ter a tecnologia, não tem infraestrutura. O País está 15 anos atrasado nesse processo”, afirmou Paulo Paiva, vice-presidente de negócios da Becomex, empresa de inteligência tributária com atuação na indústria automotiva.

Paiva, no entanto, pontuou que diante do potencial energético brasileiro, há uma oportunidade única de ser um modelo nessa transição. “O que a indústria mais quer para estar mais competitiva em 2032? Descarbonização e digitalização, então se o Brasil souber aproveitar seu potencial, terá grandes diferenciais”, completou.

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“O consumidor sabe que a vida útil de uma bateria é perto de oito anos, e que uma nova custa 40% do valor do carro.”
Antonio Jorge Martins, coordenador acadêmico da FGV

O consultor Milad Neto considera que, para o Brasil, a melhor opção é ser e permanecer eclético na utilização das energias de propulsão, sem fechar os olhos, com o potencial de usar todos os benefícios de uma matriz limpa e da disponibilidade dos biocombustíveis. “É uma grande oportunidade para o Brasil mostrar a que veio, até o final da década, de forma inteligente, podemos ser o grande líder da indústria dessas novas tecnologias”, afirmou.