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O designer Mateus Silveira, responsável pelo projeto (foto: FCA)

O automóvel não está fadado a ser excluído da vida urbana nas grandes cidades, mas deve cada vez mais retomar seu papel de carro de passeio e ser combinado de modo inteligente a outros meios de transporte, como faixas de ônibus, metrô e ciclovias. Construir mais avenidas não vai solucionar os congestionamentos nas grandes cidades – pelo contrário, pode até aumentá-los. Essas são apenas algumas das ideias de Mateus Silveira, designer da FCA (Fiat Chrysler Automobiles) responsável pelo projeto “O Futuro das Cidades”, que busca novas soluções para melhorar a mobilidade urbana. Confira aqui, nessa entrevista exclusiva, o diagnóstico e as possíveis soluções que estão sendo apontadas pelo projeto.

O que é o Projeto O Futuro das Cidades?

“O Futuro das Cidades” nasceu como um legado do Fiat Mio, um projeto de inovação aberta que resultou na criação colaborativa de um carro conceito, apresentado em 2010 no Salão do Automóvel de São Paulo. Para o desenvolvimento do Fiat Mio, as portas da empresa foram abertas de forma totalmente integrada às expectativas de clientes e consumidores, a partir do engajamento de mais de 17 mil pessoas de cerca de 160 países, que enviaram ideias sobre propulsão, materiais, segurança, ergonomia, design, dentre outras soluções tecnológicas e de mobilidade urbana.

O Mio foi o primeiro carro no mundo concebido em Creative Commons (CC), que permite que qualquer pessoa, marca ou empresa venha a utilizar as ideias coletivas. As ideias foram inspiradas na pergunta-chave: “No futuro que queremos ter, o que um carro deve ter para que eu possa chamar de meu, sem deixar de servir ao próximo?”.

O projeto do Mio deixou, portanto, como principal legado para a FCA o know-how de desenvolvimento colaborativo, que decidimos aplicar no desafio da mobilidade urbana. Como primeiro passo, em conjunto com o USP Cidades e parceria com a Coppead (Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Cesar (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), a FCA concluiu em 2014 um estudo preliminar “Cidades e Mobilidade Urbana”. O objetivo do estudo foi promover uma discussão a respeito do futuro da mobilidade urbana no Brasil.

Resumindo, movida pelo desafio de conhecer o ecossistema onde estão inseridos seus produtos, mapear problemas potenciais e contribuir para o desenvolvimento de soluções de mobilidade para as cidades brasileiras, a FCA está mobilizando empresas, academia, entidades da sociedade civil e do terceiro setor para uma reflexão sobre o tema.

Como você vê, de modo geral e sucinto, o Futuro das Cidades?

Chama atenção, ao mergulhar no assunto, que o tema da mobilidade ultrapassa a questão de ir e vir, de ter mais ou menos carros ou vias maiores ou menores: trata-se de uma questão que envolve o modelo de cidades que estamos construindo. Na nossa visão, melhorar a mobilidade é ampliar o acesso às oportunidades. Ou seja, a cidade precisa oferecer uma rede de opções de modais interconectada que dê escolhas às pessoas. A boa mobilidade não é necessariamente a que tenha mais metrôs, corredores de ônibus, avenidas, ciclovias ou calçadas de qualidade, mas a que faça uma combinação justa, inteligente e eficiente de todos os modais possíveis para acessar as oportunidades. Ao mesmo tempo, o território da cidade precisa aproximar as pessoas das oportunidades, levando empregos para as periferias e trazendo gente para morar nos centros, encurtando as distâncias e simplificando a equação da mobilidade. Há uma série de soluções que podem impactar e otimizar a mobilidade nas cidades, como as caronas solidárias, os regimes de horário flexível, home office, o compartilhamento de carros, os aplicativos de trânsito, as entregas noturnas, entre outros.

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O app Waze, assim como o Google Maps, usa os próprios carros como fonte de dados para avaliar os congestionamentos na cidade (Reprodução)

Qual a transformação que o projeto pretende trazer à Mobilidade Urbana?

Mais do que potencializar o debate sobre mobilidade urbana, o desafio é, de forma colaborativa, buscar soluções integradas para a melhoria de vida nas grandes cidades. Nesse processo, o primeiro desafio foi alinhar conceitos. Durante muito tempo, mobilidade urbana foi encarada como uma espécie de sinônimo de trânsito. Resolver a mobilidade era resolver os congestionamentos de veículos engarrafados na hora do rush. E a resposta ao longo de todo o século 20 foi a mesma: aumentar as vias para dar mais fluidez aos veículos motorizados. Com o tempo foi possível perceber que quanto mais vias, maior era o congestionamento. O trânsito tem o mesmo comportamento de um gás, se espalha e ocupa todo o recipiente (as ruas e avenidas). Tentar reduzir o congestionamento construindo mais ruas para os carros é como tentar resolver um problema de obesidade afrouxando o cinto: a causa não está sendo atacada. O acesso às oportunidades é que precisa ser maior.

Ao mesmo tempo, o trânsito não é um fato a ser combatido. Na verdade, ele é o sistema circulatório de uma cidade. As pessoas precisam circular para garantir a efervescência de oportunidades que faz uma cidade crescer e prosperar. O problema é quando essa circulação congestiona os caminhos da cidade. Nesse caso, em vez de ajudar, o trânsito acaba impedindo as pessoas de acessarem as oportunidades, criando um problema, aí sim, de mobilidade urbana. O artista plástico e pensador Leonardo da Vinci dizia que as cidades são como organismos vivos em que as pessoas e os bens materiais precisam circular para manter a saúde urbana. Ou seja, o trânsito é essencial – na medida certa.

O tema mobilidade urbana não deve, portanto, ser visto a partir de um ou outro aspecto isolado, como a quantidade de veículos nas ruas, que é apenas a parte mais visível do problema. Ou seja, o problema da febre não é o termômetro. O raciocínio de que os congestionamentos são frutos do número crescente de automóveis é limitado. A discussão deve ter como foco o modelo de cidades que estamos construindo, envolvendo um conjunto de fatores: transporte individualizado, transporte público eficiente, adensamento residencial e populacional, ocupação de solo multifuncional, infraestrutura, engenharia de trânsito, gestão da mobilidade, planejamento urbano e o uso racional do automóvel, além da educação do cidadão, seja ele motorista e pedestre. Além disso, a rede que estamos construindo permite a conexão entre os atores envolvidos, permitindo que outras ações aconteçam e que outras iniciativas sejam viabilizadas.

Enfim, a mobilidade não é um problema territorial, mas um drama no tempo. O que eventualmente poderia ser uma solução no passado, hoje pode ser um problema. A cidade é um organismo vivo e reage, muitas vezes, de maneira não previsível, de forma inesperada aos estímulos que recebe. Por fim, precisamos entender que as cidades estão estabelecidas e que não é viável imaginar que elas serão completamente refeitas, seja por motivos físicos, econômicos, históricos e culturais. Devemos ousar em como imaginar novos usos de “softwares” para rodarem nesse “hardware” que é a cidade.

Como uma indústria que fabrica carros – que são eles mesmo um dos maiores entraves à uma maior eficiência da Mobilidade Urbana, por se tratar de um meio de transporte individual – pode ajudar na melhoraria da mobilidade urbana?

Participando não apenas como um fabricante de veículos, mas como uma indústria da mobilidade. Queremos utilizar as habilidades, competências e recursos que temos disponíveis, além do know-how de prototipação de produtos e soluções de grande escala em prol do bem-estar urbano.

A Fiat está disposta a colaborar para que a redução do papel do carro na mobilidade nas grandes cidades? Do ponto de vista dos negócios, isso não seria contraditório?

Não há contradição se entendermos que o modelo ideal de mobilidade urbana apresenta uma oferta adequada de modais, capaz de permitir ao cidadão combinar aquelas que melhor lhe atendem naquele momento. No modelo multimodal, todos os modais são complementares.

Que tipo de ação a indústria automotiva pode tomar para ajudar na mobilidade urbana? Como os carros podem viver em nossas lotadas ruas?

Inovação, eficiência e desenvolvimento sustentável nos sistemas de transportes são um dos maiores desafios que a sociedade enfrenta nos dias de hoje. E todos têm um papel: a iniciativa privada, o cidadão (motorista, pedestre etc.) e o poder público. Cabe à indústria automobilística, o desenvolvimento e a produção de veículos mais adequados, seguros e conectados.

O automóvel – como meio de transporte individual – não está fadado a ser excluído de vez do cotidiano das grandes cidades e metrópoles?

Culpar o carro não vai adiantar em nada para resolver esse problema. A ideia de que o automóvel é o vilão da mobilidade urbana precisa ser superada. Talvez seja mais correto compreendê-lo como um passo evolutivo para consolidar a efervescência do território de uma cidade. Se a Times Square, em Nova Iorque, é hoje uma via de pedestres, é porque ela teve seu papel histórico importante como avenida para veículos na história de Manhattan. Houve um momento em que fazia sentido passar de carro por lá. É por esse momento que algumas cidades brasileiras estão passando agora. A jornalista e ativista americana Jane Jacobs diz, em seu livro Morte e Vida das Grandes Cidades, que o excesso de veículos motorizados e uma avenida congestionada não são a causa de um problema, mas o sintoma. Banir os carros não resolveria o acesso das pessoas às oportunidades.

O carro particular tem suas vantagens e não podemos ignorá-lo. No futuro das cidades, acreditamos no resgate do conceito de que o carro assume cada vez mais o papel de veículo de passeio, para o qual foi inicialmente projetado.

Como você vê a experiência do carsharing, bem sucedida em países europeus? Ela transforma o carro de transporte individual a coletivo? Por que você acha que ela ainda não deslanchou nas grandes cidades brasileiras?

O carsharing tem potencial para se tornar parte integrante de uma solução de mobilidade urbana e pode ser uma opção para cidadãos que ainda não têm um carro e que vivem nas cidades. Existem vários modelos e no Brasil, há discussões que ainda precisam ser feitas, para entender qual deles é o mais adequado para a nossa realidade urbana.

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É comum na Europa o compartilhamento de carros (carsharing). Esses veículos compartilhados podem circular em áreas de trânsito restrito, como o centro de Milão (foto: FCA)

A cultura de adoração do automóvel do brasileiro de classe média e acima, que vê o carro como extensão da casa, não é um obstáculo à uma melhor Mobilidade Urbana? O brasileiro aceitaria, por exemplo, “dividir” um carro com estranhos?

Isso está mudando. Pesquisa feita pela Campus Universitário, a pedido da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), ouviu 404 estudantes brasileiros para entender a relação deles com os automóveis. Entre os resultados, foi possível identificar que, se antigamente ter um carro estava atrelado a questões como liberdade e status, hoje as prioridades são tecnologia e eficiência energética.

Qual o papel do carro autônomo nessa transformação? Você vê a possibilidade de adotarmos o uso deles nas ruas brasileiras em breve?

Assim como outras soluções tecnológicas, o carro autônomo (leia mais sobre um deles, o Google Car, aqui e mais sobre carros autônomos aqui) tende a otimizar o uso da infraestrutura e parque circulante. Isso é inquestionável. Mas se não houver uma mudança de comportamento do uso, o carro autônomo só adiará a solução do problema. Se as pessoas continuarem comprando veículos, que passam a ser autônomos, para realizar seus deslocamentos, ao invés de termos congestionamentos de veículos com motoristas, teremos congestionamentos de veículos autônomos.

Divulgação
O Google Car é um dos projetos de carro autônomo que prometem revolucionar o transporte urbano