O Brasil registrou um recorde nas vendas de veículos elétricos em 2023, chegando a 94 mil unidades – quase o dobro do volume de 2022. A maior confiança dos brasileiros e a chegada de modelos mais baratos no mercado são apontadas como fatores essenciais para o avanço da frota.

Uma grande fatia das vendas corresponde a montadoras chinesas, que fizeram fortes investimentos no Brasil nos últimos meses. Para 2024, a expectativa é de consolidação do setor, incluindo avanço também no transporte público. Mas também aparecem desafios no panorama, como o descarte das baterias de lítio e as disputas das potências pelo mercado.

O presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), Ricardo Bastos, avalia que 2023 foi um “ano de virada” para o consumidor brasileiro. Em sua visão, há maior consciência sobre o mercado, que contou ainda com avanços como a maior durabilidade das baterias e o avanço da autonomia das viagens.

Bastos destaca que os elétricos chegaram a um patamar próximo dos 5% das vendas totais de veículos, um número que, em outros países, levou mais consumidores a conhecer os produtos.

Em 2023, o crescimento das vendas foi “turbinado” ainda pelo anúncio do retorno do imposto de importação desses veículos, que ocorreu no começo de janeiro deste ano, indica Bastos. Diante da notícia, muitos compradores correram para adquirir os carros nos últimos meses do ano, sem a tarifa.

Além dos carros, o transporte público também registrou importantes avanços do setor. Segundo um estudo do chamado Grupo C40 de Grandes Cidades para a Liderança Climática (C40 Cities), o número de ônibus elétricos aumentará mais de sete vezes em 32 cidades latino-americanas até 2030, representando uma oportunidade de investimento de mais de 11,3 bilhões de dólares, com mais de 25 mil veículos.

Espera-se que Brasil, Colômbia, Chile e México sejam os mercados mais importantes nos próximos anos, de acordo com a pesquisa, que prevê ainda que os veículos representarão 30% das frotas nas cidades avaliadas em 2030. O C40 Cities lembra ainda que o transporte público existente e o sistema de mobilidade compartilhada compreendem 68% de todas as viagens de passageiros na região, um dos níveis mais elevados do mundo.

Houve destaque ainda para a exploração de matérias-primas essenciais para o setor no Brasil. O Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, é destacado como um grande detentor de lítio, fundamental para as baterias dos elétricos, e as gigantes do setor Tesla e BYD se movimentaram para adquirir a mineração do material na região.

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Domínio chinês

Recentemente, a chinesa BYD ultrapassou a Tesla como a maior fabricante de carros elétricos do mundo, e o fenômeno não foi diferente no Brasil. A montadora domina a lista de veículos mais vendidos desse gênero no país, e foi destaque ao oferecer unidades mais baratas que a média, levando competidoras a encontrar maneiras para reduzir seus preços. A BYD oferece unidades por cerca de R$ 150 mil no Brasil, bem abaixo do que as rivais praticavam.

“Não é segredo que os chineses dominam o setor de elétricos, o que foi intensificado no mercado. BYD e GWM observaram e souberam explorar o espaço dos consumidores”, afirma Bastos. As duas empresas fizeram fortes investimentos no Brasil. A primeira adquiriu uma fábrica da Ford em Camaçari (BA), anunciando sua primeira produção fora da China, com investimentos de R$ 3 bilhões. Já a GMW vai operar em Iracemápolis (SP), em uma instalação que pertenceu à Mercedes-Benz, além de abrir 50 lojas pelo Brasil.

Especialistas apontam o domínio dos mercados de baterias como um elemento-chave para este cenário. “Uma vez que a bateria é o fator de custo mais elevado para os elétricos, o domínio da China na cadeia de abastecimento proporciona às empresas chinesas a oportunidade de controlar melhor os custos e, assim, tornar os veículos mais acessíveis”, explica o CEO da consultoria Automobility Ltd, Bill Russo.

“Essa é, sem dúvida, a razão mais importante para a vantagem de preços dos chineses”, afirma, lembrando que seis das dez maiores empresas de baterias para elétricos do mundo são chinesas, respondendo por cerca de dois terços das remessas globais.

Disputas entre potências

O domínio chinês não ocorreu sem uma série de críticas e reação de tradicionais potências. Em seu discurso sobre o Estado da União de 2023, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, acusou a China de “inundar” o mundo com carros baratos, e disse que Pequim mantém os preços baixos artificialmente através de subsídios. Além disso, o bloco europeu iniciou uma investigação sobre subsídios de elétricos chineses.

A medida seguiu a pressão do governo francês, mas despertou preocupações na Alemanha, cuja indústria automotiva está bastante exposta ao mercado chinês. O temor é que Pequim retalie – desencadeando um ciclo que poderia evoluir para uma guerra comercial em grande escala.

Para a pesquisadora sênior do think tank Bruegel Alicia García Herrero, a Europa foi lenta em enfrentar subsídios da China, e agora pode ser muito tarde para uma ação efetiva. Ela lembra que muitas companhias, como Tesla e Volkswagen, já investiram no país asiático, em grande parte estimuladas pelos benefícios oferecidos por Pequim.

Segundo Bill Russo, o governo da China apoia há décadas o desenvolvimento de elétricos com políticas que incluem subsídios para fabricantes e consumidores. “Esta é uma ferramenta essencial para os governos atingirem os objetivos políticos e oferecerem um incentivo económico à indústria e aos consumidores para fazerem a mudança”, avalia.

Para García Herrero, as práticas chinesas também são realizadas por muitos países, então seria difícil resolver a questão por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC). “A maneira mais efetiva para Bruxelas resolver a questão é inovando, mas até neste ponto a China vem dominando a inovação”, afirma a pesquisadora.

Brasil e o protecionismo

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também faz duras críticas às práticas chinesas, que considera “injustas”. Como resultado, Washington adotou uma série de políticas protecionistas para o setor, dificultando as vendas de veículos produzidos ou que tenham partes desenvolvidas por empresas chinesas.

Na visão de Russo, ao restringir ou adicionar impostos aos carros ou componentes chineses, os preços serão mais elevados para o consumidor, e a menor concorrência e o aumento das tarifas conduzem inevitavelmente a custos mais elevados. O movimento também deverá ser sentido fora da União Europeia e dos Estados Unidos, avalia.

Em um cenário protecionista, Ricardo Bastos, da ABVE, vê espaço para o desenvolvimento da indústria no Brasil, incluindo a cadeia completa de produção. Da exploração de lítio ao desenvolvimento das baterias, chegando à montagem final, o país teria condição de concluir todo o processo, e neste cenário se beneficiaria de menores barreiras para a exportação.

Vantagens de “chegar depois”

Sobre os riscos do setor, Bastos avalia que o Brasil conta com uma vantagem, já que teve como observar os problemas que vão de segurança a distorções nos mercados de outros países, além dos impactos ambientais. Para ele, é necessário considerar que houve um importante “salto tecnológico” nos últimos anos, o que reduziu os riscos de acidentes, que por sua vez marcaram o começo da presença dos elétricos entre o grande público.

No caso do descarte das baterias, uma grande preocupação entre ambientalistas, Bastos aponta que houve grande avanço na reciclagem, e que hoje já é possível aproveitar quase 100% do lítio empregado na produção.

Além disso, o presidente da ABVE destaca que, em comparação com outros mercados com forte presença dos elétricos, como a China e a União Europeia, o Brasil possui uma matriz energética muito mais limpa. “Ambientalmente, não adianta ter o veículo elétrico se a indústria que gera energia ainda é suja”, afirma.

Para ele, 2024 deve consolidar um “mercado muito bem regulamentado” no Brasil, com os carros ganhando ainda maior confiança do público. A ABVE projeta a venda de 150 mil elétricos neste ano.