O Brasil é um país curioso. Certas coisas só acontecem aqui. Fomos o último país a acabar com a escravidão, mas em poucos lugares existe tão boa convivência entre raças. Fomos cinco vezes campeões mundiais de futebol, mas nenhum outro país campeão conseguiu perder duas Copas do Mundo em casa. Somos um dos países que mais esticam a vida útil de automóveis ultrapassados e que lideram as vendas, mas quantos podem ostentar fábricas de marcas premium como Mercedes, Audi, Land Rover, BMW e Mini? Sem contar a infinidade de marcas “nacionais” (produção local), como Toyota, Ford, Volkswagen, Honda, Mitsubishi, Fiat, Suzuki, Peugeot, Jeep, Citroën, Chevrolet, Chery, Hyundai, Troller e Nissan. Só no Brasil, entretanto, a Peugeot foi lançada como marca popular e a Citroën como marca premium. Ambas pertencem ao grupo francês PSA.

Mas esse posicionamento vai mudar – e logo. Não sei se isso será feito aos poucos, discretamente, mas a Peugeot passará a ostentar uma sofisticação maior, com grande enfoque na esportividade, e a Citroën ficará como uma marca de carros mais práticos e “inteligentes”, com “tecnologias úteis e inovadoras”. A empresa nega que irá se popularizar e garante que manterá a qualidade tecnológica de seus carros. Mesmo assim, a Peugeot será uma marca mais aspiracional do que a Citroën. Na verdade, esse processo de maior sofisticação da Peugeot já começou. Pela parte da marca do leão, a desastrada estratégia de batizar como 207 um hatch de entrada que na verdade se tratava de um 206 modificado, foi corrigida com o lançamento do ótimo 208. Com isso, entretanto, a marca ficou sem um hatch popular para brigar por vendas, pois o queimado 207 ocupa a última posição da categoria, com 3.253 unidades comercializadas em 2014. Posicionados numa categoria superior (hatches pequenos), o Citroën C3 está em sexto lugar (4,2% de participação) e o Peugeot 208 está em oitavo lugar (3,4%).

Aliás, o Citroën C3 (28.740 emplacamentos em 2014) é o carro mais vendido da PSA no Brasil. Ele ocupa uma discreta 24ª posição. Em seguida vem o Peugeot 208, na 30ª posição, com 23.520 licenciamentos. Entre os 50 modelos mais comercializados, só mais um aparece, o Citroën C4 Lounge, na 45ª posição, com 9.206 vendas. Mesmo que o C3 fosse popularizado ao máximo (o que não irá acontecer), sua diferença de vendas em relação ao quinto colocado da categoria, o Renault Sandero, é de 66.633 unidades. Impossível tirar essa diferença em curto ou médio prazo, pois o total de vendas da PSA Peugeot Citroën no Brasil foi de 94.334 veículos no ano passado. Para se ter uma ideia, o Sandero sozinho vendeu 95.373 unidades. Por isso, a Citroën afirma que manterá seus carros no nível atual.

Uma coisa é certa: a PSA não terá a Peugeot e a Citroën disputando o mesmo cliente, como ocorre hoje. Por isso, a linha DS já foi desmembrada da Citroën e passou a ser uma marca própria. Assim, os antigos Citroën DS3, DS4 e DS5 agora são apenas DS 3, DS 4 e DS 5 (assim mesmo, com os números separados das letras). Para fazer volume, entretanto, a Citroën teria que ser mais popular, mas o caminho para isso seria muito difícil e desagradaria os clientes já conquistados. Por isso, a Citroën investirá em tecnologias que tornem seus carros mais práticos, sem perder a qualidade atual. Não há ilusões quanto a um grande crescimento de vendas. Nesse panorama, o carro da Citroën com as melhores possibilidades seria o C4 Lounge. Ele ocupa a sétima posição na categoria de sedãs, com 9.206 vendas, mas a médio prazo é possível um crescimento desse modelo até para brigar com o Nissan Sentra, quarto colocado com 14.270 emplacamentos em 2014. Entre os dois existem ainda o Ford Fusion e o Volkswagen Jetta, quarto e quinto colocados, respectivamente.

Somados os emplacamentos de automóveis e comerciais leves, a Citroën ocupa a 11ª posição (53.804 vendas e 1,6% de participação), enquanto a Peugeot vem em 12º lugar (40.530 vendas e 1,2% de share). Se juntarmos as marcas em grupos (Volkswagen/Audi, Renault/Nissan e Fiat/Chrysler), a PSA Peugeot Citroën ocupa o 10º lugar. As vendas da Peugeot devem crescer mais do que as da Citroën em 2015. Isso porque em abril começam as vendas do novo crossover compacto nacional da Peugeot, o elogiado 2008. Esse carro entrará no apetitoso mercado que é liderado pelo Ford EcoSport, com 54.000 vendas/ano. Mas, como a vida não é fácil para ninguém, o Peugeot 2008 terá a concorrência dos também aguardados Jeep Renegade e Honda HR-V. De qualquer forma, a estratégia de curto prazo da PSA para o Brasil é de rentabilidade e não de volume.

A boa notícia é que mundialmente a PSA Peugeot Citroën está se recuperando. Em 2014, o grupo teve um crescimento de 4,3% e vendeu 2,939 milhões de veículos. Na Europa, a alta foi de 8,1%. E o Citroën C4 Picasso é líder europeu no segmento de monovolumes. Esse carro virá importado para o Brasil ainda neste semestre. Além disso, as marcas Peugeot, Citroën e DS tiveram um crescimento de 11,5% na China, que passou a ser o principal mercado da PSA. O grupo francês está especialmente satisfeito com as vendas dos crossovers 2008 e 3008 na China, que garantiram uma alta de 43% nas vendas da Peugeot naquele país. Isso respalda a boa expectativa para a chegada do 2008 ao Brasil. Mas, dessa vez, a estratégia de vendas e de marketing não poderá ter nenhum erro. Se fizer a lição de casa certinho, a Peugeot enterrará de vez a malfadada história do 207 e aí, sim, passará a ser uma marca mais aspiracional do que a Citroën.

PS: este artigo foi modificado em relação à sua primeira versão.