O sósia do Mr. Bean posava no estande da Lifan junto ao 320, “sósia” do Mini Cooper (ao fundo em preto e branco), que custa três vezes mais

Não era difícil entender a piada. Um exemplar amarelo do Lifan 320, cópia chinesa do Mini Cooper, com um sósia do ator Rowan Atkinson, que interpreta o infantilizado e trapalhão Mr. Bean, famoso pelas peripécias a bordo de um… Mini Cooper amarelo. Parecia provocação. Mas não uma provocação da Lifan à Mini, empresa do grupo BMW, mas de todas as montadoras chinesas às tradicionais marcas do Salão do Automóvel. Participantes tímidos dois anos atrás, os chineses foram ridicularizados com seus modelos mal-acabados e de design ainda tosco. A Lifan estava entre eles, com um hatch e um sedã. Foi totalmente ignorada pelo público, pela crítica e pelos competidores.

Mas 2008 foi o ano da crise. O mercado americano implodiu, as vendas de carros na Europa despencaram, as montadoras apertaram os cintos e algumas chegaram perto da falência. Enquanto os grandes mercados se debatiam para tentar respirar fora d’água, os chineses – que já experimentavam o gosto do crescimento emergente — absorveram os efeitos do tsunami financeiro, mantiveram sua moeda desvalorizada, atraíram investimento, criaram incentivos fiscais, aumentaram as exportações, cresceram, se capitalizaram e investiram em sua indústria automobilística, que já é a maior do mundo em produção e em exportação. Em 2009, foram produzidos lá 13,7 milhões de veículos. Este ano, no Salão, eles encantaram os visitantes, roubaram manchetes e deixaram preocupados os concorrentes. “Estou impressionado com o nível de algumas chinesas, que superou minhas expectativas”, afirmou Tiago Fuzi, enquanto mexia no interior da JAC J6.

“Se precisasse de uma minivan, compraria essa sem medo nenhum”, completou Eldorico Carlos Fuzi, pai de Tiago.

Apesar de, para nós, parecer ainda amadora, a China começou a produzir carros na década de 50. No final dos anos 70, com a maior abertura do mercado, o país iniciou uma revolução silenciosa. Em busca de mão de obra barata, mercado em crescimento e incentivos, montadoras estrangeiras começaram a abrir fábricas por lá – um movimento semelhante ao que aconteceu no Brasil. Mas essa oportunidade foi mais bem aproveitada por eles do que por nós: o governo obrigou, por exemplo, que cada fabricante estrangeiro se associasse a um produtor local, incentivando a concorrência e gerando empregos, mas, paralelamente, impulsionando o desenvolvimento também das empresas chinesas. Ao mesmo tempo, a população recebia incentivos para compra de carros novos e acordos de exportação foram sendo costurados com o mundo. A indústria passou de parcas 150 mil unidades produzidas em 1978 para dez milhões em 2008, duas décadas depois.

Acima, o Chery QQ, que promete ser o mais barato do Brasil e o Haima3, da “marca-irmã” da japonesa Mazda

Abdul Ibraimo, presidente da Districar

“Só crescerá no Brasil a marca que investir no pós-venda”

Nos últimos anos, eles perceberam que, para ser um concorrente forte no mercado global, não bastava ter preço baixo – era preciso investir, e eles tinham dinheiro para isso. No início deste ano, eram mais de US$ 7 trilhões em caixa. “Eu vou à China a cada seis meses e, a cada vez que chego lá, encontro um país diferente. Eles têm uma disponibilidade enorme de caixa e estão colocando isso na tecnologia”, comenta Ricardo Strunz, diretor-geral da CN Auto, que importa as marcas Jimbei, Hafei e Brilliance. “Se eles identificam um problema de suspensão, vão atrás do melhor produtor de suspensão do mundo e compram a tecnologia. Se o problema é de design, contratam estúdios europeus. Já temos aqui modelos com design Pininfarina e Italdesign”, conclui Strunz.

Os analistas de mercado concordam que, se os japoneses demoraram 30 anos para se tornarem referência e os coreanos levaram 20 anos para serem respeitados, os chineses vão demorar dez anos de investimento sério para ganhar seu espaço. Mas, desses dez anos, pelo menos uns cinco já se passaram. Ou seja, está muito próximo o momento em que o mundo irá olhar para os chineses como olha agora para os veículos da Hyundai: com respeito. Esse tempo encurtado se deve à globalização. Tecnologia hoje virou commodity: é um dos principais produtos que as grandes marcas têm para vender e se manter saudáveis.

A Porsche sobrevive vendendo tecnologia, a Mercedes vende tecnologia… Os motores da JAC, por exemplo, são da austríaca JVL (“A mesma empresa que fez o 1.8 da Audi!”, salienta Sérgio Habib, presidente da SHC, representante da marca no Brasil), a suspensão foi desenvolvida pela Lotus e os projetos de design vêm de um estúdio em Milão. Para os chineses, confiabilidade e design são, agora, assuntos sagrados. E, de um modo geral, eles estão fazendo um bom trabalho.

Seja investindo pesado, seja se beneficiando da experiência de suas parceiras na China, os carros deles estão melhorando. Um test drive feito há um ano, acredite, não serve mais como referência. A Brilliance, por exemplo, é associada à BMW. A Haima é quase uma Mazda chinesa – basta notar a semelhança dos logotipos e dos modelos Haima2, mostrado no Salão de São Paulo, e Mazda2, mostrado no Salão de Paris. A BYD, que deve chegar ao Brasil no ano que vem, é associada à Mercedes, a Chana faz carros junto com a Ford e a Chery – que ainda se mantém sem parceiros estrangeiros – está em namoro com o grupo indiano Tata, controlador das marcas Land Rover e Jaguar. Já a Geely não quis saber de parceria e comprou a Volvo Cars das mãos da Ford.

Acima, o estande da JAC, uma das chinesas que mais atraíram jornalistas e visitantes. Abaixo, o sedã médio J5, que chegará no ano que vem para enfrentar o Corolla, e o J2, um compacto para encarar o Uno

Sérgio Habib, presidente da SHC

“Tudo o que você encontra em um carro mundial você encontra no JAC”

Em relação aos carros que já estão sendo vendidos no Brasil, o que se nota são, principalmente, problemas de acabamento, barulhos e suspensão mal acertada. “Hoje a China tem de tudo, como o Brasil. Tem carros que servem muito bem às necessidades locais, mas não para o mercado internacional e tem marcas com tecnologia já bem adiantada”, explicou Ricardo Strunz. Se lembrarmos da Kombi e do Mille, por exemplo, veremos que a analogia tem fundamento. Nos próximos anos, o mercado irá selecionar quais são os competidores chineses capazes de enfrentar os modelos nacionais e quais terão que enfiar a viola no saco e voltar para casa. Mas é preciso colocar o preconceito de lado. Muitos carros fabricados aqui por marcas tradicionais têm defeitos semelhantes que são minimizados na comparação. Já se vê críticas aos chineses por coisas como, por exemplo, “acabamento plástico que imita madeira” – o que é absolutamente comum em todas as grandes marcas. Direção torta, acabamento que se solta, encaixes malfeitos no painel, suspensão barulhenta e design ultrapassado são características de alguns chineses, é verdade, mas também aparecem em alguns de nossos carros nacionais mais vendidos.

O mesmo ocorre em relação à segurança. Muitos vídeos de crash-tests na internet são antigos e não revelam a realidade. Nos últimos resultados da C-NCAP, versão chinesa da Euro NCAP, o Chery Cielo, vendido aqui, recebeu cinco estrelas no teste de impacto e um total de 45,3 pontos – mais do que um Citroën C4, por exemplo, com quatro estrelas e pontuação menor. Outro que levou cinco estrelas foi o Haima3. E eles não foram os únicos. Modelos da Changan e da BYD, entre outros, ficaram no mesmo nível. Com a mesma metodologia, a Latin NCAP avaliou nossos automóveis e os resultados foram vergonhosos. O Gol, por exemplo, só conseguiu três estrelas quando com airbag. Sem ele, apenas uma. Resultado igual foi obtido pelo nosso Fiat Palio.

Ricardo Strunz, diretor-geral da CN Auto

“Fiquei surpreso com a reação positiva dos visitantes. Vou ter que iniciar a homologação da Splendor (acima)”

E DEPOIS DA COMPRA?

O problema real e mais sério dos chineses hoje diz respeito à estrutura de pós-venda. A rede é pequena, inexperiente e maltreinada.

Na Chery – a marca que, ao lado da Chana, é a mais bem instalada e das mais antigas do país e que já anunciou uma fábrica nacional -, é quase impossível conseguir arrancar informações dos concessionários. Eles não sabem o preço das peças ou se recusam a informar, e alguns ainda discutem com o cliente: “Para que quer saber preço de peça? O carro tem três anos de garantia”, ouvimos de uma atendente. Os proprietários reclamam que, quando chega a hora da revisão, não conseguem agendar um horário para atendimento e muitos enfrentam demora para a chegada das peças. A desvalorização é outro item que deve ser analisado com cautela e pode fazer a vantagem financeira não ser tão grande. “O pós-venda é essencial no Brasil. Nos primeiros anos aqui, de 2006 a 2008, sofremos porque os produtos não estavam bons. Falamos com a matriz e resolvemos as questões. Agora, com a Haima, contratamos engenheiros locais para auxiliar com a adaptação dos produtos e investiremos R$ 200 milhões em estrutura de distribuição e ampliação da rede. O local da fábrica está em estudo”, diz Abdul Ibraimo, presidente da Districar – que representa Chana (a primeira chinesa do Brasil), Ssangyong e Haima e está preparando a vinda da JMC, que terá uma picape cabine dupla a diesel e uma minivan aqui em 2011. “Só crescerá no Brasil a marca que investir no pós-venda.” Palavra de veterano.

O certo é que, daqui a muito pouco tempo, os brasileiros desejarão um carro chinês, assim como muitos desejam hoje um coreano ou um japonês. E as montadoras locais terão que se adaptar. Com rivais fortes, competentes e que oferecem mais por menos, os brasileiros não aceitarão carros caros, pelados e defasados das grandes marcas. Será uma guerra, para a sorte dos consumidores. Antecipamos as primeiras batalhas já nas páginas a seguir.

 

 

Ao lado, o Chery Fullwin, primeiro flex da Chery, que chega no ano que vem. Abaixo, o MG 550, da marca inglesa que foi comprada pelos chineses: com motor 1.8 turbo de 170 cv e preço na casa dos R$ 95 mil, ele desafia o Audi A4 e cia.