“Primeira regra do Clube da Apple: você não fala sobre o Clube da Apple”. Quem diz isso é Mark Gurman, autoridade da Bloomberg sobre os bastidores do Vale do Silício, com fortes contatos na marca da maçã. Essas palavras foram escolhidas para explicar, em um boletim para insiders, porque, diferentemente do que esperam os observadores internacionais, as negociações entre Apple e Hyundai-Kia, visando dar forma concreta ao Apple Car, naufragaram. A razão é simples: como no famoso Clube da Luta, filme de 1999, a regra básica para quem entra no círculo de fornecedores da Apple é o silêncio. Pena: ser excluído.

Mas, calma. O recente débâcle do potencial do eixo americo-coreano (o grupo Hyundai-Kia havia confirmado os contatos) foi um choque forte nos sismógrafos que registram os movimentos ocorridos perto da falha de San Andreas. Ele ocorreu depois de meses de sinais – seguidos, por sua vez, de anos de silêncio – sobre o Projeto Titan, que deveria trazer o encouraçado de Tim Cook ao disputado mundo dos automóveis com o chamado Apple Car.

Primeiro reduzido, depois caído no esquecimento, o programa Apple Car parecia ser ambicioso demais para de fato tomar forma. Mas dizem que não é este o caso: um novo alinhamento astral favorável o trouxe de volta à ativa. E – atenção – não em sua forma reduzida, que levaria a Apple a desenvolver apenas um software de condução autônoma para ser vendido a terceiros, mas muito mais ambicioso, para desenvolver um carro real, com marca própria.

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Já ouvimos o esfregar das mãos dos numerosos amantes da maçã mordida em todo o mundo. Assim, tocamos no primeiro ponto crucial desta questão: a Apple, embora tenha enorme know-how em sistemas operacionais, o que a torna uma empresa de tecnologia no nível da Microsoft e da Oracle, é, acima de tudo, uma empresa voltada ao consumidor. Usando uma expressão emprestada do marketing, uma “love brand”.

É justamente o apoio apaixonado dos fiéis clientes que consegue sempre renovar o milagre do valor agregado de seus produtos, normalmente vendidos no mercado a preços superiores aos da concorrência.

Limitando-se ao simples papel de fornecedor de software de condução autônoma, a marca de Cupertino não teria acesso direto a tudo isto, acabando por abdicar de uma parte decisiva da sua natureza (e de seus lucros). E, de fato, assim que teve a chance, voltou o Projeto Titan à sua forma original.

Longe do inferno

Voltemos ao ponto de partida: o ruidoso rompimento com o grupo Hyundai-Kia. É para a segunda questão que se descobriu: as notícias negativas (para o potencial parceiro coreano) sobre os negócios não só demonstraram que o projeto automotivo da Apple está vivo, mas também destacaram outro ponto-chave.

Tim Cook não tem intenção de entrar no inferno industrial no qual Elon Musk arriscou o pescoço quando começou a produção em massa do Tesla Model 3 (leia avaliação): construir carros é um negócio repleto de obstáculos e pobre em satisfações.

Então, por que não terceirizar o Apple Car? Um ponto de vista que faz todo o sentido para a empresa californiana, cuja produção mais estratégica, a de telefones (além de iPad e Mac), está há anos confiada a uma colossal fornecedora taiwanesa, a Foxconn.

Bem, acontece que a Foxconn é, com o fim da hipótese coreana, um dos potenciais parceiros mais críveis para as ambições automotivas californianas: além de se orgulhar de uma parceria industrial que perdura há mais de uma década com a Apple e uma rede de produção com com mais de um milhão de funcionários em toda a China, a empresa com sede em Formosa lançou uma plataforma elétrica modular completa em outubro passado, com arquitetura de software dedicada, semelhante em concepção e fundamentos técnicos à MEB da Volkswagen – e cada vez a indústria se organiza com esse tipo de esquema.

Como prova da solidez de suas ambições, já em janeiro passado a Foxconn formou uma joint venture 50/50 com a compatriota Geely para fornecer sua produção automotiva a terceiros, bem como serviços de consultoria na parte elétrica.

Pela histórica relação (e pelo altíssimo valor que a Apple atribui aos seus segredos industriais), pela capacidade de produção, pelo know-how e pela estrutura corporativa ad hoc, os ingredientes estão todos aí. E não será surpresa se um fornecedor que fazia iPhones e PlayStation (sim, eles também) esteja na pole position para fazer o Apple Car .

Quando se disse durante anos que o carro se tornaria um smartphone sobre rodas, realmente significava que os pressupostos técnicos básicos (estrutura, bateria, circuitos, interface) finalmente coincidiriam materialmente. E quem sabe fazer celulares inevitavelmente leva vantagem.

A grande questão é quem será a parceira: eliminada a Hyundai, o jogo segue em aberto

Embora suportem uma densidade de energia mais baixa do que as células de íon-lítio, as feitas de cátodo de lítio-ferro-fosfato têm um custo muito menor. Então, a Apple poderia se concentrar na montagem da estrutura para ela, como a anunciada recentemente pela Tesla (foto)

Um plano B canadense

A Foxconn, no entanto, não é a única empresa que pode se orgulhar de ter alguma forma de relacionamento com a Apple. Quando em 2014, em Cupertino, decidiram explorar a possibilidade de se lançar no mundo dos automóveis, o briefing incluía a decisão de bater à porta de quem já tinha um pé na empresa. Como a Magna: a gigante canadense de suprimentos automotivos foi a primeira a ser consultada para o projeto Titan, para depois desaparecer do radar, quando a diretoria da Apple decidiu pela opção “só software”.

Pois bem, hoje ela recuperou terreno, porque a empresa somou alguns pontos a seu favor com a competência histórica (e a não desprezível vantagem de não ter o perfil de um concorrente direto, como seria o caso de uma montadora): de um lado, fundou uma joint-venture com a LG para fabricar grupos motopropulsores para carros elétricos; de outro, expandiu sua capacidade de produção na China, impulsionando a fabricação de modelos de emissão zero, especificamente em nome da local Beijing Auto.

À luz de tudo isso, continua difícil imaginar um casamento diferente desses dois: as hipóteses recentes da imprensa para o Apple Car foram prontamente negadas (Nissan) ou eram fracas para representar uma alternativa verdadeiramente crível (Renault e Stellantis).

Desenhando um perfil

Como você já deve ter notado, o Apple Car ainda é um livro a ser escrito. E cuja publicação ainda está distante. Quanto tempo?

A mesma incerteza que reina nesta frente é uma evidência indireta da distância a ser percorrida até sua estreia: há quem jure que o projeto estará pronto para chegar ao mercado já em 2024 (mostrando um enorme otimismo, se considerarmos os tempos de industrialização de algo sofisticado como um carro autônomo de nível 4), outros apostam em prazos mais longos, e falam de, no mínimo, 2027. Podemos tirar uma média: digamos que, com uma boa aproximação, em meados da década devemos ver os primeiros frutos concretos do projeto.

Acrescentamos que, com base nas informações disponíveis, é legítimo vinculá-lo a uma escolha tecnologicamente interessante em termos de química de baterias: inúmeras fontes acreditam nas baterias com cátodo de lítio-ferro-fosfato (LiFePo) no lugar dos íons de lítio com cátodo de níquel-cobalto-manganês.

Uma solução interessante, pois indicaria que a Apple optaria por uma composição capaz de garantir custos menores – além de outras vantagens como maior resistência ao superaquecimento.

No caminho para a bateria de LiFePo, entretanto, a Apple não estará sozinha. É com esta tecnologia que o Grupo Volkswagen conta para desenvolver substitutos dos pequenos VW up!, Skoda Citigo e Seat Mii. E, como os alemães, outros também depositam grande confiança nessa química alternativa: tanto a chinesa BYD quanto a Tesla, que já começou a equipar seus veículos para o mercado chinês com este tipo de células e deverá utilizá-las para o nascimento do Model 2, mais acessível do que o Model 3.

Por último, mas não menos importante, está a Renault, que poderia usá-los para a versão de produção do remake elétrico do Renault 5. Neste caso, um projeto procurado por Luca De Meo, que insistia na LiFePo em carros compactos da Volkswagen – que ele desenvolvia.

Por fim, uma última pista nos permite esboçar a identidade do Apple Car. E ela fala da estrutura da bateria. Nesse sentido, a marca americana parece ter enveredado por um caminho semelhante ao anunciado por Musk com a bateria com estrutura de suporte: sem ligações e âncoras na plataforma, porque o “embedding” da célula cumprirá esta função – melhorando assim a relação entre capacidade e volume geral.

De onde virão mais notícias? Difícil dizer, por enquanto. Afinal, lembre-se que a primeira regra do Clube da Apple é: você não fala sobre o Clube da Apple.

Os testes nas ruas
Um colchão no teto

A Apple percorreu um longo caminho desde que começou seus testes. E, enquanto isso, suas “mulas” (carros de teste) mudaram de forma. A partir do Lexus RX dos primeiros flagras (na foto menor), o aparato sensorial do futuro veículo autônomo – que pode ser lançado como nível quatro, sendo que o máximo é cinco – evoluiu para assumir a aparência de um colchão no teto do carro (ao lado: daí o apelido de “carro colchão” que foi dado a ele).

Apelidos irônicos à parte, os números mostram uma rápida evolução: a distância percorrida nos testes passou de 12.140 km autônomos em 2019 para 30.263 no ano passado. As desativações do sistema diminuíram: uma a cada 233 km, abaixo da média de uma a cada 190 no ano anterior.

Ruído de fundo
Conferindo os boatos

Em 21 de dezembro de 2020, a Reuters publicou rumores exclusivos de que a Apple retomou o projeto Titan, trazendo-o de volta à sua fórmula original e mais ambiciosa: a do desenvolvimento de um carro elétrico autônomo. Desde o ano anterior, quando o diretor do programa Doug Field demitiu 190 pessoas da equipe, não havia mais menção a isso.

Inevitavelmente, a notícia se espalhou pelo mundo, produzindo um efeito dominó que primeiro fez as ações da Hyundai e da Kia dispararem na bolsa, e, depois, despencarem, produzindo um número infinito de hipóteses sobre o possível sócio da Apple. Cinco nomes foram mencionados. Mas nem todos têm as mesmas chances.

Musk sobre tim cook
“Ofereci vender por um décimo do valor atual. ele recusou”

Hoje, mais de quatro anos depois de os fatos terem ocorrido, é quase inacreditável. No entanto, foi o próprio Elon Musk quem revelou, em janeiro passado, que confessou ter pensado (em 2017, quando estava sofrendo com o que chamou de “inferno da produção” do Model 3) em uma venda tout court da fábrica de Fremont: “Durante os dias mais sombrios do programa Model 3, procurei Tim Cook para discutir a venda da Tesla para a Apple por um décimo de seu valor atual.

Ele recusou até mesmo o convite para o encontro.” Um lance impulsivo via Twitter, que certamente não representa um caso isolado: Musk muitas vezes cosntuma atacar os rivais da marca da maçã mordida. Como quando, em 2015, a Apple começou a roubar alguns engenheiros da Tesla: “É o cemitério de Tesla: se não consegue trabalhar aqui, vá trabalhar com eles.”

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