Não foi milagre, como muitos argumentam, Romain Grosjean ter saído com poucos danos físicos do terrível acidente que sofreu no Grande Prêmio do Bahrein. Na verdade, foi o auge de uma jornada em busca de mais segurança na Fórmula 1 iniciada há tempos (como Emerson Fittipaldi vem contando em sua coluna na MOTOR SHOW).

Entre o final dos anos 60 e o início dos 70, quando pilotos morriam em corridas quase todo fim de semana pelo mundo todo, campeões como Emerson Fittipaldi e Jackie Stewart começaram a exigir mais segurança – para pilotos e espectadores – como prioridade absoluta dos organizações internacionais, gestores de pistas e fabricantes de automóveis.

Foi um longo caminho, com diversos contratempos, mas evidentemente valeu a pena. E neste 2020 caracterizado por muitos acidentes (talvez demais), especialmente na F1, pudemos ver a que nível de proteção aos pilotos chegamos.

O crédito deve ser dado sobretudo aos órgãos reguladores dos esportes a motor, em particular à FIA. Há muito tempo esta federação analisa criteriosamente todos os acidentes graves (cerca de trinta por ano), colocando enorme quantidade de dados à disposição de dois sub-órgãos responsáveis ​​pela análise deles, o SASG (sigla de Grupo de Estudo de Acidentes Graves, em inglês) e o RWG (Grupo de Trabalho de Pesquisa), que reportam tudo à Comissão de Segurança e também ao Conselho Mundial da própria FIA.

Grupos interdisciplinares, com médicos, engenheiros e designers, trabalham com metodologia inspirada na aplicada por autoridades aeronáuticas às tragédias aéreas, em busca de suas causas.

Além disso, hoje os monopostos estão equipados, assim como os aviões, com caixa preta e uma câmara de altíssima velocidade (da Marelli), que dispara 400 fotos por segundo, permitindo reconstruir o que aconteceu. Tudo para achar soluções regulatórias mais úteis para alcançar os mais altos níveis de segurança – que resumimos aqui.

O choque de 1994: as mortes de Senna e Ratzenberger

Ao longo dos anos, vários episódios dramáticos aceleraram a adoção de soluções para tornar os carros de corrida mais seguros. Os mais conhecidos são os com Niki Lauda em Nürburgring, em 1976, e o trágico fim de semana em Ímola, 1994, quando Ratzenberger e Ayrton Senna perderam suas vidas. Foi sobretudo a morte do brasileiro, com o choque que causou, que levou ao ponto de inflexão.

Desde então, a FIA teve excelentes resultados em segurança; um compromisso que Todt soma à batalha contra acidentes rodoviários, que causam mais de 1,3 milhão de mortes no mundo a cada ano. Não que antes do trauma de Ímola nada tivesse sido feito.

O presidente da então chamada FISA, Jean-Marie Balestre, com métodos pouco propensos ao diálogo, brigava com os envolvidos (principalmente Bernie Ecclestone, representante dos interesses das equipes), impondo desde 1985 testes de colisão frontal nos monopostos.

Por meio de mudanças nos regulamentos, foram feitas tentativas de reduzir o desempenho dos carros de F1, que, com motores turbo, chegavam a potências acima de 1.200 cv.

As novas criações dos projetistas de desempenho resultaram em revisões regulatórias cíclicas, como a abolição de dispositivos aerodinâmicos para efeito solo (1981) e da maioria das ajudas eletrônicas para os pilotos (1994).

As intervenções também envolviam os motores, cuja cilindrada, por um longo período (1966-1988) foi fixada em 3 litros para motores aspirados e 1,5 para aqueles sobrealimentados, depois foi elevada a 3.500 cm3 (em 1989, mas com abolição dos turbos) e depois reduzida novamente a 3.000 cm3 (1995) e, então, a 2.400 cm3 (2006).

Desde 2014, os carros de F1 têm motores híbridos, compostos por um V6 turbo de 1,6 litro e dois sistemas de recuperação de energia, um cinético (MGU-K) e outro térmico (MGU-H).

A potência total voltou à faixa de 1.000 cv, mas a melhoria no desempenho nos últimos anos deve-se mais à pesquisa aerodinâmica do que aos motores, cujo componente a combustão está perto dos limites de desenvolvimento.

Por isso, a FIA fez mudanças que envolvem redução da downforce, estimada em 10%, de forma a conter a velocidade nas curvas, antes de introduzir uma revolução total na configuração dos carros, a partir da próxima temporada.

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Grandes passos

Além de tentar limitar o desempenho dos carros, a FIA também trabalhou muito nos dispositivos de segurança para mitigar as consequências dos acidentes.

Em 1995, introduziu testes de colisão mais severos para carrocerias, que também tiveram que prever uma maior abertura da cabine para facilitar a saída dos pilotos após um impacto; no ano seguinte, foi a vez das paredes laterais mais altas, para proteger cabeça e pescoço dos pilotos, pontos críticos nas fortes desacelerações laterais.

Com este mesmo propósito, iniciaram-se, no mesmo período, os experimentos com o Hans (apoio de cabeça e pescoço), obrigatório a partir de 2003 e precioso para proteger os pescoços dos pilotos de violentos golpes laterais. O professor Sid Watkins, neurologista e médico da FIA até 2005, contribuiu muito com todas essas novidades.

Outras mudanças fundamentais foram marcadas pela introdução, em 1997, do crash-test das carrocerias e, no ano seguinte, dos sistemas de retenção das rodas (duplicados em 2011).

Estas últimas, aliás, tendiam a se desprender no impacto, colocando em risco os demais motoristas e os comissários ao longo do percurso – vários deles perderam a vida assim, como ocorreu em Monza, no ano 2000, com Paolo Gislimberti, atingido por um pneu disparado pela Jordan de Frentzen.

Além disso, nos últimos anos, os crash-tests para homologação das carrocerias tornaram-se cada vez mais severos.

Em 2007, foi adotado o painel de Zylon, uma fibra sintética originalmente utilizada para proteção balística cujas lâminas, com medidas de 3 a 7 mm de espessura, são coladas na lateral do corpo para proteger o quadril do piloto – um dos pontos críticos para a dificuldade em adotar estruturas capazes de dissipar a energia das colisões, como ocorre nas partes dianteira e traseira dos carros.

O risco também foi reduzido com o uso de paredes laterais anti-intrusão, concebidas para reduzir os perigos decorrentes de possíveis colisões com a frente de outros automóveis, que poderia ser capaz de penetrar na cabine.

Das pistas para as ruas

O último capítulo desta jornada pela segurança na Fórmula 1, por enquanto, foi a introdução do Halo, sistema de proteção da cabeça do motorista que se mostrou inestimável no acidente de Grosjean (e em muitos outros): introduzido em 2018 na F1, foi estendido a outras categorias de monopostos nas temporadas subsequentes.

Os protestos e ironias que marcaram sua chegada já se tornaram só uma vaga lembrança, dadas as claras demonstrações de sua utilidade.

A partir da análise do acidente de Grosjean, a FIA buscará outras soluções úteis para a segurança dos monopostos, especialmente no que diz respeito ao risco de incêndio, que se acreditava ter sido totalmente eliminado, e à proteção do sistema híbrido e da bateria, que introduziram novos elementos de risco nos carros.

E não apenas nas corridas, porque esse é um objetivo secundário da pesquisa: como vimos ao longo da história, o que funciona na pista pode muitas vezes ser de valor inestimável também para os carros comuns.

A estrutura do monoposto: segurança máxima

As ilustrações abaixo resumem os principais dispositivos de segurança dos atuais carros de Fórmula 1, resultado de anos de evolução regulatória (na imagem, o Haas). Antes de cada temporada, as carrocerias (que este ano permanecerão inalteradas para manter os custos baixos) devem passar por duros testes de colisão e obter aprovação da FIA.

Mesmo componentes individuais como o Halo (desenho abaixo) são submetidos a testes exigentes, estáticos e dinâmicos. As exigências da F1 são também impostas também pela FIA a outras categorias de monopostos, como as Fórmula 2 e 3, cujos chassis são inteiramente fabricados pela Dallara.

Em todos eles, o elemento básico é o monocoque, que se tornou uma verdadeira célula de sobrevivência, feita com materiais como o carbono e o alumínio. Somados a essa estrutura ficam os elementos necessários para dissipar a energia dos impactos: as caixas de proteção dianteiras e traseiras e as paredes anti-intrusão laterais.

A gaiola de segurança é fundamental para proteger o piloto no caso de um capotamento, como demonstrado, também no GP do Bahrein, no acidente com Lance Stroll.

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MESMO QUE AS PEÇAS DA CARROCERIA E DAS ASAS VOEM COM IMPACTO MÍNIMOS, A ESTRUTURA É BASTANTE SÓLIDA

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À prova de fogo, da cabeça aos pés

Os pilotos que corriam de gravata borboleta (como Mike Hawthorn) ou cachimbo na boca (como Felice Bonetto) são hoje somente uma lembrança distante: desde os anos 70, os macacões e os capacetes, que se tornaram integrais, tiveram avanços importantes.

Em 2020, entraram em vigor as novas normas segurança na Fórmula 1 (FIA 8856-2018), mais severas em relação ao tempo de resistência ao fogo e à contenção da diferença de temperatura entre corpo e o ambiente. O material é o Nomex, uma fibra de metal-aramida feita pela Dupont.

segurança na Fórmula 1

segurança na Fórmula 1Cintos de segurança: tudo em um instante

A possibilidade de desatar os cintos de segurança de seis pontos em um instante foi decisiva para aumentar a a segurança na Fórmula 1 e salvar Grosjean. Os modelos da Sabelt, que equipam os Haas, resistiram a uma desaceleração de 53 g sem deformar a fivela de alumínio (Ergal 7075). A alavanca de liberação é saliente, e por isso pôde ser facilmente encontrada.

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