De certa forma, era de esperar. A empresa que criou o sistema de busca mais fácil da internet inventou o carro mais fácil do mundo. Não tem pedal de freio nem acelerador. Banco traseiro? Esqueça. Rádio? Não. Porta-luvas? Muito menos. E tampouco retrovisor. Mas, acima de tudo, falta o elemento mais fundamental, imprescindível naquilo que estamos acostumados a chamar de automóvel: o volante. E, neste ponto, somos obrigados a perguntar: o Google Car, com máxima de 40 km/h  e movido por um letárgico motor elétrico, é mesmo um carro? A questão não é trivial como pode parecer à primeira vista. Segundo Sergey Brin, a mente por trás do projeto (e cofundador do Google, junto com Larry Page), o Google Car é para “aqueles com mobilidade reduzida ou que hoje não conseguem encontrar alternativas ao transporte privado”. Um veículo que, chamado pelo smartphone, aparece em minutos e o leva aonde você quiser. Christopher Urmson foi o responsável por tornar o projeto realidade, e afi rma: “Ter um carro já não faz mais sentido; ele fica parado 95% do tempo, representando um péssimo investimento. E, quando se move, cria congestionamentos e acidentes de trânsito, porque o homem ao volante não tem cuidados e atenção constantes.”

Entender exatamente o que o Google sugere para o futuro é difícil.  Apesar de seu árduo trabalho junto aos meios de comunicação e do tempo e dinheiro investidos no projeto e de seu potencial revolucionário, cada entrevista, cada explicação, cada pergunta sobre o programa no-driver (sem motorista) e seu conteúdo técnico é devolvida ao emitente. Parece que o Google não quer limitar sua ideia a um serviço de chofer para centros urbanos, mas questionar o próprio modelo de negócio dos automóveis, centrado no motorista e na posse do veículo, sobre o qual a indústria automotiva prospera. Tudo, porém, é bem mais complicado do que pode parecer.

Passar dos atuais auxílios eletrônicos à condução, como o piloto automático adaptativo e os alertas de colisão e mudança de faixa, desenvolvidos para a eliminação total do ser humano ao volante, levanta questões com as quais o Google não parece querer lidar sozinho. Vamos analisar só três, para não entrar em especulações técnicas prematuras, considerado o estágio de evolução do protótipo. A infraestrutura, por exemplo: ou os carros nas estradas são todos iguais, projetados para se moverem como sangue nas veias ou pacotes de bytes nas rodovias digitais, ou a questão da segurança não será resolvida. Aí é preciso reinventar o sistema de transporte para que o tráfego, composto de veículos com movimentos recíprocos e integrados, seja controlado por um grande irmão que supervisiona os riscos. Quantos países podem pagar por algo assim? Apenas alguns países desenvolvidos. E os outros? A segurança seria negada às nações mais pobres?

Assim, um dos maiores obstáculos para os automóveis de condução assistida é a atribuição de culpa em acidentes. Hoje, a tecnologia já tem 99,9% de confiabilidade. Mas e o 0,1% restante? Todo o conceito de sociedade, com leis, regra e ética, se baseia no exercício racional da consciência humana: colocar nessa equação um elemento mecânico, por mais sofisticado que ele seja, nos obrigaria a repensar o complexo sistema que rege nossas vidas enquanto cidadãos.

Por último, provavelmente a questão mais fundamental: a negação da liberdade. O impacto social do carro do Google, caso realmente se concretize, será enorme. Quem desenvolve carros sem motoristas esquece que os automóveis são muito mais do que meios de transporte. São objetos com os quais as pessoas expressam paixões, inclinações e aspirações, por meio da escolha do modelo, cor, motor e carroceria. São demonstrações de status. São pequenos universos nos quais queremos viver sozinhos, em paz – verdadeiros oásis de tranquilidade. São sinônimo de liberdade e independência em um mundo cheio de regras. E o Google Car é a negação disso tudo.