18/10/2020 - 20:28
Ringo Starr e Charlie Watts, bateristas dos Beatles e dos Rolling Stones, são músicos de movimentos econômicos, com técnica autoral, desenvolvida de forma particular – Ringo é canhoto mas toca em bateria para destros, e Watts, o mais velho dos Stones, sempre quis tocar jazz mas acabou numa banda de rock. O jeito de Watts segurar as baquetas e essa ponte esburacada entre os gêneros musicais foram determinantes para ele inventar batidas e levadas, que ajudaram a empurrar os Stones ao sucesso – não só por constituírem um estilo rítmico original e envolvente, mas por terem influenciado o jeito de o colega guitarrista Keith Richards tocar. A simbiose entre Watts e Richards (outro de técnica espartana) acabou rendendo, por exemplo, Satisfaction e Honky Tonk Women, dois dos maiores hits da história do rock. O que isso tem a ver com seu Fusca? Tudo.
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Watts e Ringo são minimalistas. Sempre apostaram – por limitação ou propósito, não importa – na essência, no fundamental, deixando os enfeites de lado. Como um fusca – ou um Ford T, uma Lambretta, uma Honda XL 250, um Jeep Willys –, carregam um estilo, uma estética tão básicos e tão bem resolvidos que transcendem à função que desempenhavam quando apareceram para o mundo (garantir movimento). E que sobrevivem ao tempo, o grande senhor do bom gosto.
Na sua época, o Ford T (1908) foi uma espécie de Satisfaction (canção que tem o mais famoso riff de guitarra do rock, composto de 3 notas, tocadas numa única corda). O Ford T surgiu com uma carroceria simples, montada sobre um chassi ridiculamente espartano, empurrado por um motor tão compacto e sem frescuras que até pouco tempo atrás sobrevivia em fazendas no Uruguai na lida diária. Sim, no coméço do século já havia carros “fancy”, sofisticados, luxuosos (Cadillac Model K de 1906, por exemplo). E por que o Ford T virou um hit, clássico, o objeto do desejo de todo antigomobilista ligado à era dos calhambeques? Primeiro, claro, porque é durável e há muitos entre nós até hoje. Mas principalmente porque às vezes adoramos coisas simples e belas. Isso mesmo, a velha história do menos é mais.
Se hoje você tem dinheiro para comprar um sedã alemão com 34 mil chips, câmeras, sensores, módulos eletrônicos de controle, vá fundo. É muito legal. Mas não olhe atravessado para quem se sente mais feliz dentro de um fusca ou de um jipe Willys — os carros mais presentes e longevos entre os espartanos e nascidos depenados.
A exemplo do Ford T, o Fusca, o jipe, a Lambretta, a XL não são longevos unicamente porque foram pensados para durar (sim, têm o DNA mais forte que seus contemporâneos e são fáceis de serem consertados). O fato de aparentemente não apodrecerem, não desmancharem com o tempo, também está ligado a um outro fator: está ligado ao design. Simpes: seu visual os faz muito queridos, e quem é querido ganha amor, cuidado, atenção.
Quem não abre um sorriso quando vê passar um Fusca (ou fuca, como se diz no RS)? Suas características “humanóides” (nariz, olhos amendoados, sorriso cromado, testa redonda) são a simpatia em pessoa, ou melhor, em aço e vidro. Não foi por acaso que Herbie, um dos carros mais famosos do cinema juvenil, é um Fusca.
Ok, outros carros tentaram parecer amistosos, fofos, e não tiveram tanto sucesso. Daí vem a pergunta: o que faz do Fusca — ou do Jeep Willys, ou da Lambretta — um ícone do design, do estilo, do bom gosto? Resposta: a sofisticação despojada de suas linhas, a harmonia visual, que conforta nossa percepção, nossos sentidos, que ilumina a visão que temos sobre as coisas, que nos enche de alegria e vivacidade, que nos faz crer na humanidade e no futuro. (Aliás, o que é a arte senão algo que provoca esses efeitos?).
A Bugatti Type 57 SC Atlantic dos anos 30 é um dos carros mais lembrados em termos de sofisticação de design (aqui se trata de voo criativo, da inventividade do designer, não dos eventuais componentes usados na construção do carro). A beleza das curvas, o sensual desequilíbrio dos volumes, a fluidez das linhas e a elegância do conjunto fazem deste objeto industrial quase uma obra de arte. É uma obscenidade de tão lindo. O Coopersucar FD01, desenhado por Ricardo Divila, talvez seja o carro mais bonito já criado na maior categoria do automobilismo (sem patriotismo bobo aqui, por favor). Mas o jeitão strip down, de carro pelado, do fusca e da Lotus 49 (1967), com suas formas explícitas, mignon, seu estilo outspoken, objetivo, down to earth, com suas linhas enganosamente óbvias, atraem nossos olhos com o mesmo potencial de sedução. Nos fornecem o mesmo ou talvez maior substrato para sonhar. Nos colocam mais próximos, são menos ameaçadores.
Em resumo, por serem básicos, com uma aparência supostamente despida de ambições grandiosas, nos fazer enxergar a nobreza da humildade e o singelo abraço da simplicidade.
Quando tocamos no ponto ambição, falamos novamente de design, de estilo. Porque também se pode falar de ambição financeira, política, social. Por exemplo, o fusca, diferentemente de uma Bugatti, foi desenhado como um carro para as massas, a mando de Hitler, numa estratégia malévola de perpetuação no poder e sedução das mentes. Da mesma forma, o Lotus 49 só fora inventado daquela forma revolucionária (o motor era parte integrante do chassi, o que eliminou muito aço, treliça, solda, peso, torção e riscos) porque Colin Chapman queria coroas de louros – ou champanhes, como se passou a comemorar as vitórias na F1.
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Propósitos são motores da arte, sabemos disso (mesmo alguns maus propósitos). Assim como o jipe, a Lambretta também surgiu na esteira da II Guerra Mundial. Reza a lenda que eram feitas com os motores de partida dos bombadeiros italianos que sobraram do conflito e foram idealizadas para a locomoção de uma população empobrecida que devia trafegar em “ruas” cercadas de escombros .
Mas se propósito e função podem ser realmente um drive poderoso na criação de um veículo (ou de qualquer objeto), é a criatividade humana que vai dar vida — e às vezes longevidade — ao projeto. Não existiria um fusca como o conhecemos ou um Lotus 49 se não houvesse um Ferdinand Porsche ou um Colin Chapman. É a cabeça do designer, suas referências, seu repertório, sua visão de mundo – e sua ambição criativa, sua inventividade – que dão forma às coisas. Foi atrás de uma complexa bateria (3 tambores, 3 ou 4 pratos, tocados com as duas mãos e os dois pés), que Ringo e Charlie Watts criaram os andamentos mais simples e ao mesmo tempo mais sofisticados dos anos 60, levadas que botaram muita gente pra dançar ou refletir, sair de casa, viajar, cair na estrada, se mandar atrás dos próprios sonhos.
A simplicidade, quando traz em suas formas a percepção de harmonia, equilíbrio, beleza, sensualidade e vibração, tem o poder de impactar a vida como poucas coisas – da vastidão de mares, espaço e desertos a soluções grandiosas para as dores do homem como as ideologias que nos seduzem e aprisionam. A sofisticação do ‘menos é mais’ pode ser uma poderosa inspiração para a vida. E para a compra do seu próximo carro. Quem sabe um dia ele não vira uma preciosidade como o fusca?