Antes mesmo da maravilhosa onda de garimpar, restaurar e curtir veículos antigos que tomou conta do país anos atrás e vive seus dias de glória (ou, para muitos, seus dias de preços bizarros), tive a sorte de ter um pai antigomobilista. Era médico, mas curtia mesmo história, design, mecânica, marcenaria, e era craque com parafusos e pistolas de pintar. Não se nasce amante de velharias. É uma “mania” que você herda. Do avô, do pai, da mãe, dos amigos. Claro, a onda atual (pré “gentrificação”, com a licença semântica) tem muitos outros fatores: a renovação acelerada da frota brasileira nos anos 1990 em diante, que deixou pérolas perdidas na garagem de muito tio; a liberação e depois o barateamento dos veículos importados, que fez muitos corações, que antes batiam silenciosos pelo velho Karmann Ghia do vizinho, terem arritmias por marcas de sonhos como BMW, Audi e Land Rover; e, na última década, a enxurrada de programas de TV sobre carros antigos, que mostram em 45 minutos uma restauração que levou três anos para ser concluída.

Tempestade perfeita: “Agora é a hora de eu lembrar minha infância”, pensaram várias pessoas que mergulharam no universo dos antigos. Aí o preço da ferrugem explodiu. E eu tive de pular fora.

Não basta acelerar, é preciso ter estilo

O que uma picape pode fazer por seu estilo

A biblioteca básica do motociclista cool

Nos anos 1980, ganhei do velho uma Vemaguet 1967 (perua DKW), que me levava para a faculdade. Era uma excentricidade para um jovem na época – mesmo no Rio Grande do Sul, celeiro de preciosidades, onde nasci. Naquela década, carro vintage era coisa de velho nostálgico. Não para mim e minha família.

O velho contava que, recém-casado, havia “customizado” um DKW dos anos 30 sozinho, na garagem (fez um woody). Depois, quando eu já era moleque, teve um Candango (jipe DKW dos anos 60, do anúncio abaixo), no qual aprendi a dirigir (ok, muito antes de ter carta, mas essa é outra história). O grande barato foi quando ele resolveu reformar um Mercury 1948 em casa. Adolescente, eu ajudava apertando braçadeiras embaixo do carro, ligando o V8 quando ele queria ver algo naquele cofre gigantesco, colocando e tirando da garagem. As memórias são sentimentais, valiosas. Logo depois saí de casa para fazer a vida. O velho ainda tentou mexer num Willys Interlagos, mas a fibra de vidro provocou alergia e ele abandonou o projeto. Quando faltou paciência e energia, desistiu de brincar.

Candango, jipe DKW, com motor 2T e primeira marcha não sincronizada, em que aprendi a dirigir (Foto: reprodução)

Segui a saga quando, em 1991, já morando em São Paulo, consegui comprar uma Honda CB 500 Four 1973 (foi o ano da abertura econômica global, e começaram a chegar veículos importados). Moto era minha paixão e a Four era um sonho de adolescente. Reformei inteira. Linda. Corri muitos anos atrás dos escapes originais, dos reparos dos carburadores (quatro), dos cabos, dos amortecedores originais. Era uma epopeia achar qualquer peça. Até o final dos anos 1990 não se falava em e-commerce. Nem se imaginava que duas décadas depois os chineses iriam reproduzir até a bucha de borracha dos amortecedores das Yamahas trails dos 70’.

Honda 500 Four 1973: adquirida em 1991, pré moda vintage, foi toda restaurada, menos o motor. (Foto: arquivo pessoal)

Tempos depois, a Four já nos trinques, fui buscar em Florianópolis uma Honda XL 250 Motosport 1975 e, seis meses na sequência, uma Yamaha DT 250 1974, do mesmo dono. Tinha uma picape Strada e puxava os 700 quilômetros numa tacada. No outro dia, botava a moto na caçamba (com a roda de trás saindo por cima da tampa) e rumava a longa jornada de volta. Feliz. Sozinho. Sonhando com a ideia de ter algo da minha memória afetiva, algo exclusivo, um item cujo prazer era muito mais valioso do que o amontoado de aço e borracha que eu carregava.

Tive as três motos (e outras duas vintages) até poucos anos atrás. Sobrou uma Honda XL 250 1982.

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No fundo, é isso: carros ou motos antigos são um prazer e um inferno ao mesmo tempo. É meio como qualquer paixão. Você é seduzido, se entrega, briga, o relacionamento se desgasta, se apaixona de novo, vive um idílio, começa a desencanar, e, se não morrer antes, pula fora ou leva um pé (sim, há gente que dá uma rasteira nas suas convicções a ponto de você deixar a belezura partir, especialmente se a pessoa for milionária).

Para quem está entrando no inebriante universo dos veículos clássicos, humildemente tentarei dar algumas dicas. Que fique claro: sou um diletante. Nunca fui fanático como gente que conheço. Mas já vi cada coisa… Pior, vi em família. Certa vez, em viagem no interior do Rio Grande, meu velho avistou um Mercury enterrado na lama, numa residência rural ao lado da estrada. O carro ainda tinha duas pequenas grades (enferrujadas) do enorme conjunto gradil que compõe a frente do modelo. Faltavam ao nosso. Não teve dúvida: deu meia volta, entrou na estradinha da casa, falou com o dono, e comprou ali mesmo as peças (pediu uma serra e teve de cortar os parafusos oxidados). Saiu radiante, explicando a importância daquelas grelhas, sedentas pra dar tétano no intruso que as tirou do leito de morte. Isso é só um pequeno exemplo do estado de torpor que a paixão por veículos antigos pode causar. Vi coisas muito “piores”.

Em destaque, a “grelha” que faltava ao Mercury 1948 do meu pai e que o fez entrar numa propriedade rural e negociá-la com o dono, que jamais tinha visto (Foto: Wikimedia Commons)

Então, não se engane: 1) você vai encontrar 90% de malucos (no melhor dos sentidos); e 2) 10% de quase malucos.

Talvez os malucos não gostem das dicas deste post. Talvez achem que não tenho autoridade pra falar (nunca coloquei placa preta, por exemplo, embora todos as minhas motos tivessem direito a essa famosa certificação de autenticidade. É que sempre achei que placa preta era carteirinha do clube dos 90% e, como discípulo de Marx, de tendência Groucho, não sou de fazer parte de clube).

Dito isso, aqui vão minhas humildes dicas aos entusiastas neófitos. São apenas reflexões sobre minha própria experiência na área, então ninguém deve levar como verdade absoluta. Mas vale refletir sobre…

Informação
Se você não conhecer e curtir história e design, há grande risco de você passar vergonha. Restaurar ou mesmo customizar (heresia para puristas) veículos antigos requer estudo, muita leitura, horas no YouTube, papo com especialistas. Claro, e uma disposição de ficar longe da família e da roda de amigos. Sim, você vai ter de mergulhar nos intestinos da internet para evitar que a picape dos seus sonhos seja vista como a fubica do trio elétrico do circo marambaia. E vai ter de gastar muita saliva com seu mecânico para aprender tudo o que ele quiser ensinar. Ele provavelmente sabe de truques que não estão na internet.

Tempo
Como insinuado acima, você vai investir horas preciosas da sua vida na brincadeira. E vai subtrair essas horas da convivência com sua cara metade, filhos, amigos, colegas de trabalho. Sábado de manhã é período que todo antigomobilista se isola da “vida real”: leva o brinquedo para passear, vai à oficina – na maioria das  vezes só para bater papo –, veste o velho macacão engraxado para encerar e trocar a lâmpada queimada do pisca, vai na praça onde sabe que vão seus colegas que têm a mesma “doença”. Bem, alguns vão tomar chope com os devotos do culto comum (mas essa também é outra história).

Paixão
Nada será mais útil na hora de procurar peças, achar mecânicos, refazer projetos, viajar centenas de quilômetros ou cruzar oceanos atrás de partes, ficar com o carro parado meses por falta de um maldito parafuso… A paixão (e aqui não estou falando de obsessão, comum na turma) vai recompensar seus dias inglórios com momentos de gozo. A via crucis do restauro vai render orgulho, autoestima, sensação de capacidade, admiração. E isso não é pouca coisa.

Confiança
Há malandros no Brasil, há malandros atrás de um perfil do eBay, num e-commerce chinês, numa loja on-line europeia. Como muitas vezes você vai depender de outros para seu plano dar certo, fique de olho neles. A vida digital diminui os riscos – se você souber vasculhar perfis, comentários, cheirar avaliações falsas e não for impetuoso. Mas nem tudo é digital: na hora de abrir a tampa do cabeçote do seu V8 flathead Ford 1951, você vai ter de conhecer um com mecânico. Mais do que bom: confiável. E vai ter de acreditar nele quando ouvir que a tampa está empenada e que vai custar R$ 2 mil reais para retificar (sei lá quanto custa o serviço…). Eu tive sorte: entreguei minhas seis motos vintages para a mesma oficina por três décadas. Estabeleci uma relação de confiança com os donos a ponto de nos tornarmos amigos.

Autoconhecimento
É legítimo tratar a relação que você tem com seu brinquedo desmontado como uma terapia: 1) como toda boa terapia (nunca fiz, mas já ouvi maravilhas), você vai sair melhor depois de apertar uns parafusos que andavam soltos; 2) após uma sessão de 50 minutos tentando acertar o ponto do platinado, você vai se perguntar: por que estou fazendo isso tudo?

Terapia tem disso. É uma longa jornada, em que você vai se defrontar com suas virtudes, atributos, qualidades, valores, habilidades e manias. Tais como:

  1. Tolerância
    Deixar um carro 100% original pode levar qualquer um a loucura (imagine achar 134 parafusos diferentes medidos em polegadas, quando o mundo todo hoje trabalha na escala milimétrica). Você vai ter de fazer concessões, para não pirar. Há gambiarras honestas, aceitáveis, até na igreja dos mais fanáticos apóstolos vintages. Sem contar que a tecnologia está aí para melhorar nossas vidas (um pequeno exemplo: óleos sintéticos fazem menos fumaça nos motores dois tempos).
  2. Sociabilidade
    Se você for um cara zen, aberto, easy going, vai ganhar muitos amigos nesse meio. A imensa maioria do pessoal adora falar. Sobre carros, é verdade. Ou sobre viagens de carro. Ou sobre viagens pra trazer peças. Sobre como achou o emblema do radiador do Chevrolet 1931 na garagem da velhinha viúva. Muitos têm predileção por papos sobre preços, especialmente se forem barganhas. Aliás, se você é meio antissocial e não curte jogar conversa fora, vai perder o melhor do antigomobilismo – os encontros. Ok, eles podem ser um porre também: você vai ficar uma hora falando com seu mais novo melhor amigo sobre o velho Ford Bigode que ele trouxe da cidade da avó e… Espere aí! Você não tem o menor interesse por Ford Bigodes!
  3. Maturidade
    Você sabe, carro antigo, moto vintage, veículos clássicos, em geral, não são objetos de transporte do desejo de gente jovem. Hoje, a galerinha fala de bicicletas, patinetes, pegar metrô e andar a pé. Se tanto, de uma bike elétrica. Ou seja, você vai encontrar uma turma mais madura. Leia bem, não se trata de Uma Thurman mais madura. OK, a ondinha vintage tem trazido um pessoal dos seus 30/40 anos pro circuito. Está na faixa? É provável que já seja bem recebido. Mas a velha regra ainda conta entre os sábios do templo (ou do tempo): se não sabe brincar, nem desce pro play.
  4. Capacidade de diversão, de ser lúdico
    Há um velho ditado beat/hippie que prega que tão importante quanto o destino é a viagem (alguns dizem que a viagem é mais importante, mas essa, também, é outra história). No trajeto da sucata até o troféu, você vai entender isso melhor. Um dos grandes prazeres de remontar um objeto antigo é exatamente… a caça ao tesouro. Achar os pedaços enterrados em ilhas remotas. Montar o quebra cabeças. Não se trata de visitar a obra da reforma da sua casa. Trata-se de arregaçar as mangas e participar da escolha de cada arruela que vai ficar escondida sob o carpete.

Adição
Leia esse tópico sob duas óticas semânticas: da soma e da dependência. Resumo da ópera: você não vai querer ter apenas um veículo antigo. De repente, meio sem querer, você compra uma segunda moto, sei lá, só para não detonar tanto a primeira restaurada, ou para não expor a belezura ao risco (de ser riscada ou de ser riscada da sua vida). E então você começa a dar um carinho no patinho feio. Arruma o banco, troca a relação, conserta o vazamento da torneirinha do tanque… Quando vê, o que era pra ser estepe vira uma nova paixão. Você toma tanto carinho pela coisinha desengonçada que quer fazer dela uma obra de arte. Aí você diz: ok, vou comprar uma piorzinha, tão detonada que não vou nem querer mexer. Vai ser a última! Em pouco tempo, já tem uma coleção, está alugando uma garagem, e brigando com sua cara metade (não se engane, você vai ouvir essa frase constantemente: “Você só pensa nisso!”)

 

Coleção: o sintoma mais clássico de que você foi afetado pela “maluquice” do mundo vintage (Foto: Arquivo pessoal)

Fazer escolhas
Vai chegar a hora de vender. Como muitos, eu não acreditava nessa hipótese. Costumava perceber quando um cara que veio elogiar a moto iria perguntar: “Você pensa em vender?”. Pouco antes, já levava o papo, literalmente, para a sepultura: “Minhas motos vão pro túmulo comigo”, dizia. Era batata: o cara desistia da oferta antes de fazê-la e eu me livrava de uma longa negociação ou de ser seduzido por um xaveco irrecusável (leia-se $$$$). Depois de 30 anos cuidando das garotas, descobri que até uma paixão genuína, longa, pode acabar em relação desgastada (sem trocadilho com corrente e pinhão, ok?). Para falar a verdade, quando cai a ficha, dói pouco. Chega uma hora (ou idade) em que você pensa: ok, um problema a menos.

Se você chegou até aqui, vai ganhar um prêmio pela paciência:

Nove verdades do mundo dos antigos:

  • Carro velho não é carro antigo. Não, aquele Tempra lindo não vai dividir atenções ao lado de um Opala 1969.
  • Carro antigo não é carro clássico. Seu Corcel II, desculpe, dificilmente vai se tornar clássico.
  • Tamanho não é documento: motor V8 ou moto 4 cilindros podem dar tanta dor de cabeça que você às vezes acaba reformando um fusca.
  • Preço não é garantia. Nem as barbadas – cujo restauro você imagina jamais vai custar o bastante para tirar seu achado da categoria de “bom negócio” –, nem os que custam os olhos da cara – que fazem seus olhos crerem no “perfeito estado” descrito no anúncio e que você não vai “precisar fazer nada”.
  • Mosca branca não existe mais. Depois da internet, todo mundo sabe quanto vale um veículo clássico bem conservado.
  • Único dono não quer dizer que se chama Ralph Lauren. O proprietário pode estar mais para o maníaco da serra elétrica.
  • Carro parado há 20 anos não é pérola de joalheria. Carro parado estraga.
  • Carro de velhinha não é o Land Rover da rainha da Inglaterra.
  • É a turma do bolinha. Infelizmente, a diversidade de gêneros é mínima.